Cada objecto costuma transformar-se, em nós, segundo as imagens que evoca e reúne, por assim dizer, em seu redor. É claro que um objecto também pode agradar por si mesmo, pela diversidade das sensações agradáveis que suscita em nós numa percepção harmoniosa; mas bem mais frequentemente, o prazer que um objecto nos dá não se encontra no objecto em si mesmo. A fantasia embeleza-o, cingindo-o e quase projectando nele imagens que nos são queridas. Nem nós o percepcionamos já tal qual como ele é, mas quase animado pelas imagens que suscita em nós ou que os nossos hábitos lhe associam. No objecto, em suma, nós amamos aquilo que nele projectamos de nosso, o acordo, a harmonia que estabelecemos entre nós e ele, a alma que ele adquire só para nós e que é formada pelas nossas recordações.
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza, Pelas aves que voam no olhar de uma criança, Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza, Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança, Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia, Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos, Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria, Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes, Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos, Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes, Pelos aromas maduros de suaves outonos, Pela futura manhã dos grandes transparentes, Pelas entranhas maternas e fecundas da terra, Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra, Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna, Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz. Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, Com o teu esconjuro da bomba e do algoz, Abre as portas da História, deixa passar a Vida!
Ausente olho o universo nada vejo. Sinto um vazio fecho os olhos,imagino teu corpo esbelto envolto numa áurea luminosa. Flutuas no espaço que me limita circunda e controla. Grito a tua ausência... Não te vejo não te sinto espaço sideral universo vazio num vácuo total.
Somos um objecto, na paixão, totalmente submissos, sem poder prever os golpes que sofremos; aí reside a grandeza, a loucura, o assombro da paixão. Para mim, o desejo só pode ter lugar entre o masculino e o feminino, entre sexos diferentes. O outro desejo é um autodesejo, é, para mim, como que o prolongamento da prática masturbatória do homem ou da mulher. O esplendor da paixão, a sua imensidade, o seu sofrimento, o seu inferno, reside no facto de só poder verificar-se entre géneros irreconciliáveis, o masculino e o feminino. Tanto a paixão como o desejo.
Os casais homossexuais são muito mais estáveis do que os casais heterossexuais, porque na homosexualidade há uma prática simples e cómoda do desejo. A prática heterossexual é ainda selvagem, é ainda a floresta do desejo. Na prática homossexual não creio que exista esse fenómeno de posse que existe na heterossexual. Na prática homossexual existe uma espécie de intermutabilidade do prazer, as pessoas nunca pertencem na homossexualidade como pertencem na heterossexualidade. É um inferno não se poder escapar ao desejo de uma pessoa, é a isso que eu chamo, quando a mim, o esplendor da heterossexualidade.
Ó noite, coalhada nas formas de um corpo de mulher vago e belo e voluptuoso, num bailado erótico, com o cenário dos astros, mudos [e quedos. Estrelas que as suas mãos afagam e a boca repele, deixai que os caminhos da noite, cegos e rectos como o destino, suspensos como uma nuvem, sejam os caminhos dos poetas que lhes decoraram o nome. Ó noite, coalhada nas formas de um corpo de mulher! Esconde a vida no seio de uma estrela e fá-la pairar, assim mágica e irreal, para que a olhemos como uma lua sonâmbula.
Cada um só vê do universo aquilo que a sua sensibilidade ou a sua maneira de ser lhe permite. O universo pode ser muito mais vasto e muito mais diferente do que aquilo que é apenas o nosso mundo .
Quando já nada se espera particularmente exaltante mas palpitamos e seguimos aquém da consciência, ferramenta existindo, cegamente afirmando, como um pulso que golpeia as trevas, quando miramos de frente os vertiginosos olhos claros da morte, dizemos as verdades; as bárbaras, terríveis, amorosas crueldades Dizemos os poemas que enchem os pulmões dos que, asfixiados, pedem ser, pedem ritmo, pedem lei para aquilo que sentem em excesso, com a velocidade do instinto, com o raio do prodígio, como mágica evidência, o real que se transforma no idêntico a si mesmo. Poesia para o pobre, poesia necessária como o pão de cada dia, como o ar que exigimos treze vezes por minuto, para ser e enquanto somos dar o sim que glorifica. Porque vivemos aos tropeços, porque apenas nos deixam dizer que somos quem somos, os cânticos não podem ser, sem pecado, um adorno. Estamos chegando ao fundo. Maldita a poesia concebida como um luxo cultural para os neutros que, lavando-se as mãos, se desentendem e evadem. Maldigo a poesia de quem não toma partido até manchar-se. Faço minhas as faltas. Sinto em mim os que sofrem e canto respirando. Canto, e canto e cantando para lá de minhas penas, me amplio. Quisera dar-lhes vida, provocar novos actos, e calculo por isso com a técnica que posso. Me sinto um engenheiro do verso e um operário que forja com outros a Espanha em seus alicerces. Assim é minha poesia: poesia-ferramenta ao mesmo tempo pulsar do unânime e cego. Assim é, arma carregada de futuro expansivo com que aponto o teu peito. Não é uma poesia gota a gota pensada. Não é um belo produto. Não é um fruto perfeito. É algo como o ar que todos respiramos e é o canto que expande o que dentro levamos. São palavras que repetimos sentindo como nossas, e voam. São mais que o pensado. São gritos no céu, e, na terra, são actos.
Presentes São moeda de troca gestos que se confundem favores amores traições... Presentear é amar é olhar-mos o mundo sem contemplações. Repartir oferecer dividir-mos o nosso ser num abraço de ternura sorrindo dar sem pensar receber. Amar não custa nada o preço pouco importa o que conta é a intenção sentir-mos a felicidade num aperto de mão. Vamos dividir a amizade o conhecimento a verdade a paz o amor A sinceridade. Vamos dar as mãos num cordão humano vamos dizer basta á miséria á fome á desumanidade...
Sei agora que a paixão é azul e coroada como o sangue e a cabeça das rainhas. Que tem nome de flor e é ímpar. Porque, se o não fosse, não seria paixão.
(...) a maravilha que deve ser escrever um livro: a invenção dentro da memória; a memória dentro da invenção; e toda essa cavalgada de uma grande fuga, todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadas, com a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionado, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem outra mais disposta a por amor ser fecundada. Como se pode interpretar de outro modo esse velho lugar-comum de ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro? Só se em todos os casos se tratar de grandes e inevitáveis actos de amor: com a Mulher, com a Terra, com a Língua. Mas de plantar árvores e ter filhos haverá sempre muita gente que se encarregue. De destruir árvores também; de estragar filhos igualmente. Em compensação, um livro, um livro que viva, multiplicado, durante alguns anos ou alguns séculos, e que depois vá morrendo, sem ninguém dar por isso, mas nunca de uma só vez, até ser enterrado na maior discrição ou até se ver de súbito renascido, inesperadamente ressuscitado, um livro com semelhante destino - luminoso por mais obscuro, obscuro por mais luminoso -, isto é que foi sempre o que me empolgou.
Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela, E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela. Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala, E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança. Amar é pensar. E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela. Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela. Tenho uma grande distração animada. Quando desejo encontrá-la Quase que prefiro não a encontrar, Para não ter que a deixar depois. Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só Pensar nela. Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.