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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Os Lusíados-canto V




1

"Estas sentenças tais o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos.
E, como é já no mar costume usado,
A vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo: "Boa viagem", logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento.

2

"Entrava neste tempo o eterno lume
No animal Nemeio truculento,
E o mundo, que com tempo se consume,
Na sexta idade andava enfermo e lento:
Nela vê, como tinha por costume,
Cursos do sol quatorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a armada se estendia.

3

"Já a vista pouco e pouco se desterra
Daqueles pátrios montes que ficavam;
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E já depois que toda se escondeu,
Não vimos mais enfim que mar e céu.

4

"Assim fomos abrindo aqueles mares,
Que geração alguma não abriu,
As novas ilhas vendo e os novos ares,
Que o generoso Henrique descobriu;
De Mauritânia os montes e lugares,
Terra que Anteu num tempo possuiu,
Deixando à mão esquerda; que à direita
Não há certeza doutra, mas suspeita.

5

"Passamos a grande Ilha da Madeira,
Que do muito arvoredo assim se chama,
Das que nós povoamos, a primeira,
Mais célebre por nome que por fama:
Mas nem por ser do mundo a derradeira
Se lhe aventajam quantas Vénus ama,
Antes, sendo esta sua, se esquecera
De Cipro, Gnido, Pafos e Citera.

6

"Deixamos de Massília a estéril costa,
Onde seu gado os Azenegues pastam,
Gente que as frescas águas nunca gosta
Nem as ervas do campo bem lhe abastam:
A terra a nenhum fruto enfim disposta,
Onde as aves no ventre o ferro gastam,
Padecendo de tudo extrema inópia,
Que aparta a Barbaria de Etiópia.

7

"Passamos o limite aonde chega
O Sol, que para o Norte os carros guia,
Onde jazem os povos a quem nega
O filho de Climene a cor do dia.
Aqui gentes estranhas lava e rega
Do negro Sanagá a corrente fria,
Onde o Cabo Arsinário o nome perde,
Chamando-se dos nossos Cabo Verde.

8

"Passadas tendo já as Canárias ilhas,
Que tiveram por nome Fortunadas,
Entramos, navegando, pelas filhas
Do velho Hespério, Hespérides chamadas;
Terras por onde novas maravilhas
Andaram vendo já nossas armadas.
Ali tomamos porto com bom vento,
Por tomarmos da terra mantimento.

9

"Aquela ilha apartamos, que tomou
O nome do guerreiro Santiago,
Santo que os Espanhóis tanto ajudou
A fazerem nos Mouros bravo estrago.
Daqui, tanto que Bóreas nos ventou,
Tornamos a cortar o imenso lago
Do salgado Oceano, e assim deixamos
A terra onde o refresco doce achamos.

10

"Por aqui rodeando a larga parte
De África, que ficava ao Oriente,
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente;
A mui grande Mandinga, por cuja arte
Logramos o metal rico e luzente,
Que do curvo Gambeia as águas bebe,
As quais o largo Atlântico recebe.

11

"As Dórcadas passamos, povoadas
Das Irmãs, que outro tempo ali viviam,
Que de vista total sendo privadas,
Todas três dum só olho se serviam.
Tu só, tu, cujas tranças encrespadas
Netuno lá nas águas acendiam,
Tornada já de todas a mais feia,
De bívoras encheste a ardente areia.

12

"Sempre enfim para o Austro a aguda proa
No grandíssimo gólfão nos metemos,
Deixando a serra aspérrima Leoa,
Co'o cabo a quem das Palmas nome demos.
O grande rio, onde batendo soa
O mar nas praias notas que ali temos,
Ficou, com a Ilha ilustre que tomou
O nome dum que o lado a Deus tocou.

13

"Ali o mui grande reino está de Congo,
Por nós já convertido à fé de Cristo,
Por onde o Zaire passa, claro e longo,
Rio pelos antigos nunca visto.
Por este largo mar enfim me alongo
Do conhecido pólo de Calisto,
Tendo o término ardente já passado,
Onde o meio do mundo é limitado.

14

"Já descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemisfério, nova estrela,
Não vista de outra gente, que ignorante
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante,
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde ainda se não sabe
Que outra terra comece, ou mar acabe.

15

"Assim passando aquelas regiões
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dois invernos fazendo e dois verões,
Enquanto corre dum ao outro Pólo,
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre f az no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, apesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Netuno.

16

"Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não menos é trabalho, que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.

17

"Os casos vi que os rudos marinheiros,
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as cousas só pela aparência,
E que os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência,
Vêem do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos, ou mal entendidos.

18

"Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e coisa certo de alto espanto,
Ver as nuvens do mar com largo cano
Sorver as altas águas do Oceano.

19

"Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava) levantar-se
No ar um vaporzinho e subtil fumo,
E, do vento trazido, rodear-se:
Daqui levado um cano ao pólo sumo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia:
Da matéria das nuvens parecia.

20

"Ia-se pouco e pouco acrescentando
E mais que um largo masto se engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de água em si chupava;
Estava-se coas ondas ondeando:
Em cima dele uma nuvem se espessava,
Fazendo-se maior, mais carregada
Co'o cargo grande d'água em si tomada.

21

"Qual roxa sanguessuga se veria
Nos beiços da alimária (que imprudente,
Bebendo a recolheu na fonte fria)
Fartar co'o sangue alheio a sede ardente;
Chupando mais e mais se engrossa e cria,
Ali se enche e se alarga grandemente:
Tal a grande coluna, enchendo, aumenta
A si, e a nuvem negra que sustenta.

22

"Mas depois que de todo se fartou,
O pó que tem no mar a si recolhe,
E pelo céu chovendo enfim voou,
Porque coa água a jacente água molhe:
As ondas torna as ondas que tomou,
Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
Vejam agora os sábios na escritura,
Que segredos são estes de Natura.

23

"Se os antigos filósofos, que andaram
Tantas terras, por ver segredos delas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão diversos ventos dando as velas,
Que grandes escrituras que deixaram!
Que influição de signos e de estrelas!
Que estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo sem mentir, puras verdades.

24

"Mas já o Planeta que no céu primeiro
Habita, cinco vezes apressada,
Agora meio rosto, agora inteiro
Mostrara, enquanto o mar cortava a armada,
Quando da etérea gávea um marinheiro,
Pronto coa vista, "Terra! Terra!" brada.
Salta no bordo alvoroçada a gente
Co'os olhos no horizonte do Oriente.

25

"A maneira de nuvens se começam
A descobrir os montes que enxergamos;
As âncoras pesadas se adereçam;
As velas, já chegados, amainamos.
E para que mais certas se conheçam
As partes tão remotas onde estamos,.
Pelo novo instrumento do Astrolábio,
Invenção de subtil juízo e sábio,

26

"Desembarcamos logo na espaçosa,
Parte, por onde a gente se espalhou,
De ver eousas estranhas desejosa
Da terra que outro povo não pisou;
Porém eu co'os pilotos na arenosa
Praia, por vermos em que parte estou,
Me detenho em tomar do Sol a altura
E compassar a universal pintura.

27

"Achamos ter de todo já passado
Do Semicapro peixe a grande meta,
Estando entre ele e o círculo gelado
Austral, parte do mundo mais secreta.
Eis, de meus companheiros rodeado,
Vejo um estranho vir de pele preta,
Que tomaram por força, enquanto apanha
De mel os doces favos na montanha.

28

"Torvado vem na vista, como aquele
Que não se vira nunca em tal extremo;
Nem ele entende a nós, nem nós a ele,
Selvagem mais que o bruto Polifemo.
Começo-lhe a mostrar da rica pelo
De Colcos o gentil metal supremo,
A prata fina, a quente especiaria:
A nada disto o bruto se movia.

29

"Mando mostrar-lhe peças mais somenos:
Contas de cristalino transparente,
Alguns soantes cascavéis pequenos,
Um barrete vermelho, cor contente.
Vi logo, por sinais e por acenos,
Que com isto se alegra grandemente.
Mando-o soltar com tudo, e assim caminha
Para a povoação que perto tinha.

30

"Mas logo ao outro dia, seus parceiros,
Todos nus, e da cor da escura treva,
Descendo pelos ásperos outeiros,
As peças vêm buscar que estoutro leva:
Domésticos já tanto e companheiros
Se nos mostram, que fazem que se atreva
Fernão Veloso a ir ver da terra o trato
E partir-se com eles pelo mato.

31

"É Veloso no braço confiado,
E de arrogante crê que vai seguro;
Mas, sendo um grande espaço já passado,
Em que algum bom sinal saber procuro,
Estando, a vista alçada, co'o cuidado
No aventureiro, eis pelo monto duro
Aparece, e, segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha.

32

"O batel de Coelho foi depressa
Pelo tomar; mas, antes que chegasse,
Um Etíope ousado se arremessa
A ele, por que não se lhe escapasse;
Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa
Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;
Acudo eu logo, e enquanto o remo aperto,
Se mostra um bando negro descoberto.

33

"Da espessa nuvem setas e pedradas
Chovem sobre nós outros sem medida;
E não foram ao vento em vão deitadas,
Que esta perna trouxe eu dali ferida;
Mas nós, como pessoas magoadas,
A resposta lhe demos tão tecida,
Que, em mais que nos barretes, se suspeita
Que a cor vermelha levam desta feita.

34

"E sendo já, Veloso em salvamento,
Logo nos recolhemos para a armada,
Vendo a malícia feia e rudo intento
Da gente bestial, bruta e malvada,
De quem nenhum melhor conhecimento
Pudemos ter da índia desejada
Que estarmos ainda muito longe dela;
E assim tornei a dar ao vento a vela.

35

"Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir)
-"Ó lá, Veloso amigo, aquele outeiro
É melhor de descer que de subir."
- "Sim, é, (responde o ousado aventureiro)
Mas quando eu para cá vi tantos vir
Daqueles cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem

36

"Contou então que, tanto que passaram
Aquele monte, os negros de quem falo,
Avante mais passar o não deixaram,
Querendo, se não torna, ali matá-lo;
E tornando-se, logo se emboscaram,
Por que, saindo nós para tomá-lo,
Nos pudessem mandar ao reino escuro,
Por nos roubarem mais a seu seguro.

37

"Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prósperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite estando descuidados,
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem que os ares escurece
Sobre nossas cabeças aparece.

38

"Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo o negro mar, de longe brada
Como se desse em vão nalgum rochedo.
- "Ó Potestade, disse, sublimada!
Que ameaço divino, ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?" -

39

"Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

40

"Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te, que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo:
Com um tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo:
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.

41

"E disse: — "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas,
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d'estranho ou próprio lenho:

42

- "Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mim, que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pela terra,
Que ainda hás de sojugar com dura guerra.

43

- "Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem
Com ventos e tormentas desmedidas.
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei d'improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo.

44

- "Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu, suma vingança.
E não se acabará só nisto o dano
Da vossa pertinace confiança;
Antes em vossas naus vereis cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte.

45

- "É do primeiro Ilustre, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os Céus,
Serei eterna e nova sepultura,
Por juízos incógnitos de Deus.
Aqui porá da Turca armada dura
Os soberbos e prósperos troféus;
Comigo de seus danos o ameaça
A destruída Quíloa com Mombaça.

46

- "Outro também virá de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a formosa dama
Que Amor por grã mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que duro e irado
Os deixará dum cru naufrágio vivos
Para verem trabalhos excessivos.

47

- "Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nascidos;
Verão os Cafres ásperos e avaros
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e perclaros
A calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Depois de ter pisada longamente
Co'os delicados pés a areia ardente.

48

- "E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dois amantes míseros ficarem
Na férvida e implacável espessura.
Ali, depois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados as almas soltarão
Da formosa e misérrima prisão." -

49

"Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando alçado
Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo
Corpo certo me tem maravilhado.-
A boca e os olhos negros retorcendo,
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:

50

- "Eu sou aquele oculto e grande Cabo,
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram, fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que para o Pólo Antarctico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.

51

- "Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e o Centimano;
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Netuno, que eu buscava.

52

- "Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha empresa.
Todas as Deusas desprezei do céu,
Só por amar das águas a princesa.
Um dia a vi coas filhas de Nereu
Sair nua na praia, e logo presa
A vontade senti de tal maneira
Que ainda não sinto coisa que mais queira.

53

- "Como fosse impossível alcançá-la
Pela grandeza feia de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la,
E a Doris este caso manifesto.
De medo a Deusa então por mim lhe fala;
Mas ela, com um formoso riso honesto,
Respondeu: — "Qual será o amor bastante
De Ninfa que sustente o dum Gigante?

54

- "Contudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira,
Com que, com minha honra, escuse o dano."
Tal resposta me torna a mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano,
(Que é grande dos amantes a cegueira)
Encheram-me com grandes abondanças
O peito de desejos e esperanças.

55

- "Já néscio, já da guerra desistindo,
Uma noite de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tétis única despida:
Como doido corri de longe, abrindo
Os braços, para aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.

56

- "Ó que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei com um duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando com um penedo fronte a fronte,
Que eu pelo rosto angélico apertava
Não fiquei homem não, mas mudo e quedo,
E junto dum penedo outro penedo.

57

- "Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?
Daqui me parto irado, e quase insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro inundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse,

58

- "Eram já neste tempo meus irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos;
E por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos:
E como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do fado inimigo
Por meus atrevimentos o castigo.

59

- "Converte-se-me a carne em terra dura,
Em penedos os ossos sefizeram,
Estes membros que vês e esta figura
Por estas longas águas se estenderam;
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto cabo converteram
Os Deuses, e por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas." -

60

"Assim contava, e com um medonho choro
Súbito diante os olhos se apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.

61

"Já Flegon e Piróis vinham tirando
Com os outros dois o carro radiante,
Quando a terra alta se nos foi mostrando,
Em que foi convertido o grão Gigante.
Ao longo desta costa, começando
Já de cortar as ondas do Levante,
Por ela abaixo um pouco navegamos,
Onde segunda vez terra tomamos.

62

"A gente que esta terra possuía,
Posto que todos Etíopes eram,
Mais humana no trato parecia
Que os outros, que tão mal nos receberam.
Com bailos e com festas de alegria
Pela praia arenosa a nós vieram,
As mulheres consigo e o manso gado
Que apascentavam, gordo e bem criado.

63

"As mulheres queimadas vêm em cima
Dos vagarosos bois, ali sentadas,
Animais que eles têm em mais estima
Que todo o outro gado das manadas.
Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,
Na sua língua cantam concertadas
Com o doce som das rústicas avenas,
Imitando de Títiro as Camenas.

64

"Estes, como na vista prazenteiros
Fossem, humanamente nos trataram,
Trazendo-nos galinhas e carneiros,
A troco doutras peças, que levaram.
Mas como nunca enfim meus companheiros
Palavra sua alguma lhe alcançaram
Que desse algum sinal do que buscamos,
As velas dando, as âncoras levamos.

65

"Já aqui tínhamos dado um grã rodeio
A costa negra de África, e tornava
A proa a demandar o ardente meio
Do Céu, e o pólo Antarctico ficava:
Aquele ilhéu deixamos, onde veio
Outra armada primeira, que buscava
O Tormentório cabo, e descoberto,
Naquele ilhéu fez seu limite certo.

66

Daqui fomos cortando muitos dias
Entre tormentas tristes e bonanças,
No largo mar fazendo novas vias,
Só conduzidos de árduas esperanças.
Colo mar um tempo andamos em porfias,
Que, como tudo nele são mudanças.
Corrente nele achamos tão possante
Que passar não deixava por diante.

67

"Era maior a força em demasia,
Segundo para trás nos obrigava,
Do mar, que contra nós ali corria,
Que por nós a do vento que assoprava.
Injuriado Noto da porfia
Em que colo mar (parece) tanto estava,
Os assopros esforça iradamente,
Com que nos fez vencer a grão corrente.

68

"Trazia o Sol o dia celebrado,
Em que três Reis das partes do Oriento
Foram buscar um Rei de pouco nado,
No qual Rei outros três há juntamente.
Neste dia outro porto foi tomado
Por nós, da mesma já contada gente,
Num largo rio, ao qual o no e demos
Do dia, em que por ele nos metemos.

69

"Desta gente refresco algum tomamos,
E do rio fresca água; mas contudo
Nenhum sinal aqui da Índia achamos
No Povo, com nós outros quase mudo.
Ora vê, Rei, que tamanha terra andamos,
Sem sair nunca deste povo rudo,
Sem vermos nunca nova nem sinal
Da desejada parte Oriental.

70

"Ora imagina agora coitados
Andaríamos todos, perdidos,
De fomes, de tormentas quebrantados,
Por climas e por mares não sabidos,
E do esperar comprido tão cansados,
Quanto a desesperar já compelidos,
Por céus não naturais, de qualidade
Inimiga de nossa humanidade.

71

"Corrupto já e danado o mantimento,
Danoso e mau ao fraco corpo humano,
E além disso nenhum contentamento,
Que sequer da esperança fosse engano.
Crês tu que, se este nosso ajuntamento
De soldados não fora Lusitano,
Que durara ele tanto obediente
Por ventura a seu Rei e a seu regente?

72

"Crês tu que já não foram levantados
Contra seu Capitão, se os resistira,
Fazendo-se piratas, obrigados
De desesperação, de fome, de ira?
Grandemente, por certo, estão provados,
Pois que nenhum trabalho grande os tira
Daquela Portuguesa alta excelência
De lealdade firme, e obediência.

73

"Deixando o porto enfim do doce rio
E tornando a cortar a água salgada,
Fizemos desta costa algum desvio,
Deitando para o pego toda a armada;
Porque, ventando Noto manso e frio,
Não nos apanhasse a água da enseada,
Que a costa faz ali daquela banda
Donde a rica Sofala o ouro manda.

74

"Esta passada, logo o leve leme
Encomendado ao sacro Nicolau,
Para onde o mar na costa brada e geme,
A proa inclina duma e doutra nau;
Quando indo o coração que espera e teme
E que tanto fiou dum fraco pau
Do que esperava já desesperado,
Foi duma novidade alvoroçado

75

"E foi que, estando já da costa perto,
Onde as praias e vales bem se viam,
Num rio, que ali sai ao mar aberto,
Batéis à vela entravam e saíam.
Alegria muito grande foi por certo
Acharmos já pessoas que sabiam
Navegar, porque entre elas esperamos
De achar novas algumas, como achamos.

76

"Etíopes são todos, mas parece
Que com gente melhor comunicavam;
Palavra alguma Arábia se conhece
Entre a linguagem sua que falavam;
E com pano delgado, que se tece
De algodão, as cabeças apertavam;
Com outro, que de tinta azul se tinge,
Cada um as vergonhosas partes cinge.

77

"Pela Arábica língua, que mal falam,
E que Fernão Martins muito bem entende,
Dizem que por naus, que em grandeza igualam
As nossas, o seu mar se corta e fende;
Mas que lá donde sai o Sol, se abalam
Para onde a costa ao Sul se alarga e estende,
E do Sul para o Sol, terra onde havia
Gente, assim como nós, da cor do dia.

78

"Muito grandemente aqui nos alegramos
Com a gente, e com as novas muito mais:
Pelos sinais que neste rio achamos
O nome lhe ficou dos Bons Sinais.
Um padrão nesta terra alevantamos,
Que, para assinalar lugares tais,
Trazia alguns; o nome tem do belo
Guiador de Tobias a Gabelo.

79

"Aqui de limos, cascas e d'ostrinhos,
Nojosa criação das águas fundas,
Alimpamos as naus, que dos caminhos
Longos do mar, vêm sórdidas e imundas.
Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,
Com mostras aprazíveis e jocundas,
louvemos sempre o usado mantimento,
Limpos de todo o falso pensamento.

80

"Mas não foi, da esperança grande e imensa
Que nesta terra houvemos, limpa e pura
A alegria; mas logo a recompensa
A Ramnúsia com nova desventura.
Assim no céu sereno se dispensa:
Com esta condição pesada e dura
Nascemos: o pesar terá firmeza,
Mas o bem logo muda a natureza.

81

"E foi que de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne, e juntamente apodrecia.

82

"- Apodrecia com um fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava;
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião subtil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instructo,
Pela carne já podre assim cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.

83

"Enfim que nesta incógnita espessura
Deixamos para sempre os companheiros,
Que em tal caminho e em tanta desventura
Foram sempre conosco aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos, assim mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos.

84

"Assim que, deste porto nos partirmos
Com maior esperança e maior tristeza,
E pela costa abaixo o mar abrirmos
Buscando algum sinal de mais firmeza.
Na dura Moçambique enfim surgimos,
De cuja falsidade e má vileza
Já serás sabedor, e dos enganos
Dos povos de Mombaça pouco humanos.

85

"Até que aqui no teu seguro porto,
Cuja brandura e doce tratamento
Dará saúde a um vivo, e vida a um morto,
Nos trouxe a piedade do alto assento.
Aqui repouso, aqui doce conforto,
Nova quietação do pensamento
Nos deste: e vês aqui, se atento ouviste,
Te contei tudo quanto me pediste.

86

"Julgas agora, Rei, se houve no mundo
Gentes que tais caminhos cometessem?
Crês tu que tanto Eneias e o facundo
Ulisses pelo inundo se estendessem?
Ousou algum a ver do mar profundo,
Por mais versos que dele se escrevessem,
Do que eu vi, a poder de esforço e de arte,
E do que ainda hei de ver, a oitava parte?

87

"Esse que bebeu tanto da água Aónia,
Sobre quem tem contenda peregrina,
Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia,
Atenas, Ios, Argo e Salamina:
Esse outro que esclarece toda Ausónía,
A cuja voz altíssona e divina
Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece,
Mas o Tibre, com o som se ensoberbece;

88

Cantem , louvem e escrevam sempre extremos
Desses seus Semideuses, e encareçam,
Fingindo Magis Circes, Polifemos,
Sirenas que com o canto os adormeçam;
Dêem-lhe mais navegar à vela e remos
Os Cicones, e a torra onde se esqueçam
Os companheiros, em gostando o Loto;
Dêem-lhe perder nas águas o piloto;

89

"Ventos soltos lhe finjam, e imaginem
Dos odres e Calipsos namoradas;
Harpias que o manjar lhe contaminem;
Descer às sombras nuas já passadas:
Que por muito e por muito que se afinem
Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,
A verdade que eu conto nua e pura
Vence toda grandíloqua escritura."

90

Da boca do facundo Capitão
Pendendo estavam todos embebidos,
Quando deu fim à longa narração
Dos altos feitos grandes e subidos.
Louva o Rei o sublime coração
Dos Reis em tantas guerras conhecidos;
Da gente louva a antiga fortaleza,
A lealdade de ânimo e nobreza.

91

Vai recontando o povo, que se admira,
O caso cada qual que mais notou;
Nenhum deles da gente os olhos tira,
Que tão longos caminhos rodeou.
Mas já o mancebo Délio as rédeas vira
Que o irmão de Lampécia mal guiou,
Por vir a descansar nos Tétios braços;
E el-Rei se vai do mar aos nobres paços.

92

Quão doce é o louvor e a justa glória
Dos próprios feitos, quando são soados!
Qualquer nobre trabalha que em memória
Vença ou iguale os grandes já passados.
As invejas da ilustre e alheia história
Fazem mil vezes feitos sublimados.
Quem valerosas obras exercita,
Louvor alheio muito o esperta e incita.

93

Não tinha em tanto os feitos gloriosos
De Aquiles, Alexandro na peleja,
Quanto de quem o canta, os numerosos
Versos; isso só louva, isso deseja.
Os troféus de Melcíades famosos
Temístoeles despertam só de inveja,
E diz que nada tanto o deleitava
Como a voz que seus feitos celebrava.

94

Trabalha por mostrar Vasco da Gama
Que essas navegações que o mundo canta
Não merecem tamanha glória e fama
Como a sua, que o céu e a terra espanta.
Si; mas aquele Herói, que estima e ama
Com dons, mercês,. favores e honra tanta
A lira Mantuana, faz que soe
Eneias, e a Romana glória voe.

95

Dá a terra lusitana Cipiões,
Césares, Alexandros, e dá Augustos;
Mas não lhe dá contudo aqueles dois
Cuja falta os faz duros e robustos.
Octávio, entre as maiores opressões,
Compunha versos doutos e venustos.
Não dirá Fúlvia certo que é mentira,
Quando a deixava António por Glafira,

96

Vai César, sojugando toda França,
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas , numa mão a pena e noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
O que de Cipião se sabe e alcança,
É nas comédias grande experiência.
Lia Alexandro a Homero de maneira
Que sempre se lhe sabe à cabeceira.

97

Enfim, não houve forte capitão,
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente,
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque, quem não sabe arte, não na estima.

98

Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias, nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez, e tão austeros,
Tão rudos, e de engenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco, ou nada disso.

99

As Musas agradeça o nosso Gama
o Muito amor da Pátria, que as obriga
A dar aos seus na lira nome e fama
De toda a ilustro e bélica fadiga:
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga,
Nem as filhas do Tejo, que deixassem
As telas douro fino, e que o cantassem.

100

Porque o amor fraterno e puro gosto
De dar a todo o Lusitano feito
Seu louvor, é somente o pressuposto
Das Tágides gentis, e seu respeito.
Porém não deixe enfim de ter disposto
Ninguém a grandes obras sempre o peito,
Que por esta, ou por outra qualquer via,
Não perderá seu preço, e sua valia.

Fonte da Moura.

Lenda da Fonte da Moura
A muito antiga Fonte da Moura que ainda hoje existe nos arredores de Santarém tem na origem a história da perseguição dos Mouros por D. Afonso Henriques, após a conquista da cidade. Um grupo de cavaleiros, liderado pelo jovem rei, seguia já há dias pelos campos quando, cheios de sede, procuraram uma fonte. Foi então que surpreenderam uma jovem moura fugitiva que ao ser questionada onde ficaria a fonte mais próxima lhes disse que era muito longe, acrescentando em tom de desafio que se o Deus dos cristãos era tão poderoso que fizesse nascer ali mesmo uma fonte. Talvez então ela se convertesse. D. Afonso Henriques desceu do cavalo e retirou-se para rezar e, de repente, ouviu-se um som surdo e viu-se um jacto de água límpida e fresca que formou um pequeno regato. Os cavaleiros ajoelharam-se perante o milagre e a jovem moura, que chorava de emoção, prometeu dedicar a sua vida ao Deus cristão. A fonte ficou para sempre conhecida como a Fonte da Moura.

Verão total.


Programa da RTP Verão Total em directo de Constância - 17 de Julho




No próximo dia 17 de Julho, o concelho de Constância vai ser palco do programa da RTP Verão Total.



O Anfiteatro dos Rios, localizado na confluência do rio Zêzere com o Tejo servirá de cenário para a transmissão televisiva.



Serão seis horas de emissão, em directo, das 10 às 13 horas e das 15 às 18 horas, onde se mostrará o Concelho de Constância, nomeadamente o património, o ambiente, o artesanato, as festividades, a música, a gastronomia, o desporto, o turismo, a indústria, as gentes da terra entre muitos outros temas.



Segundo o sítio da RTP, em www.rtp.pt, Verão Total é uma verdadeira viagem pelo nosso país em formato televisivo, num registo de Entretenimento Familiar. A RTP vai marcar presença em 43 locais de norte a sul de Portugal, incluindo a Madeira e os Açores.



As emissões em directo são conduzidas por Júlio Isidro, Jorge Gabriel, João Baião, Sónia Araújo, Serenella Andrade, Tânia Ribas de Oliveira e Isabel Angelino.


Por CMC

domingo, 13 de julho de 2008

Cultura e civilização.


Uma mesa cheia de feijões.
O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão.
O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo que o segundo.
Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas.
O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território é o processo da CIVILIZAÇÃO.
O segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA.
É mais difícil a passagem da civilização para a cultura do que a formação de civilização.
A civilização é um fenómeno colectivo.
A cultura é um fenómeno individual.
Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura.

Almada Negreiros, in 'Ensaios'

Quero apenas...


Quero apenas cinco coisas…
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.
* Pablo Neruda *

Meio ambiente!


Não perserve apenas meio ambiente,seja rigoroso perserve-o todo!

sábado, 12 de julho de 2008

Conversas vadias II

Primavera


É pelo teu rosto em que as marés passam,
pelos teus lábios em que voam gaivotas,
pelos teus dedos em que a luz perpassa,
pelos teus olhos que me traçam as rotas,

que este barco encontra o caminho,
que este dia descobre que não é tarde,
que as palavras se bebem como vinho,
e o fogo não queima quando arde.

É no que me dizes quando a noite fala,
no que perdura da manhã que se esquece,
no que é dito em tudo o que se cala,
e não precisa de ser dito quando amanhece.

Pode ser o amor tantas vezes sentido,
ou só aquilo que vive no coração,
pode ser o que pensava ter esquecido,
e regressa agora pela tua mão.

Quantas vezes já foi primavera,
e logo aí as flores morreram:
até ao dia em que nada ficou como era,
e todas as folhas mortas reverdeceram.

Nuno Júdice.

Mem Ramires e a conquista de Santarém.


Lendas:


Lenda da Fundação do Mosteiro de Alcobaça


Em 1147, a moura renegada Zuleiman apresentou-se nos paços de Coimbra na presença de D. Pedro Afonso, irmão do primeiro rei de Portugal, surpreendendo o infante com a revelação que aquela seria a melhor altura para conquistar Santarém. Zuleiman despeitada por ter sido abandonada por Muhamed, o alcaide de Santarém, queria vingar-se dando aos cristãos as informações que tinha sobre a defesa do castelo. Entretanto, D. Afonso Henriques já tinha enviado o seu cavaleiro Mem Ramires a Santarém para estudar o inimigo e a astúcia e a cautela do cavaleiro foram fulcrais para a decisão do ataque. Conta a lenda que foi na serra dos Albardos que o primeiro rei de Portugal fez a promessa de construir um mosteiro se Deus lhe desse a vitória. Mem Ramires segurou a escada contra as muralhas por onde entraram os soldados e Santarém amanheceu cristã. O mosteiro de Alcobaça foi construído em cumprimento de um voto do primeiro rei de Portugal, sendo juntamente com a Batalha e os Jerónimos uma das jóias mais preciosas do património arquitectónico português

sexta-feira, 11 de julho de 2008

A memória da Leitura.


A Memória da Leitura

Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, sobre a nossa cabeça, o sol diminuía de intensidade no céu azul, o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido, tudo isto, que a leitura nos devia ter impedido de perceber como algo mais do que a falta de oportunidade, ela pelo contrário gravava em nós uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento actual do que o que líamos então com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora, é apenas como sendo os únicos calendários que guardámos dos dias passados, e com a esperança de ver reflectidas nas suas páginas as casas e os lagos que já não existem.

Marcel Proust, in 'O Prazer da Leitura'

Tecnologias !

Neruda.


LIVRO DAS PERGUNTAS (1974)


I

Porque é que os imensos aviões
não passeiam com os seus filhos?

Qual é o pássaro amarelo
que enche o ninho de limões?

Porque é que não ensinam a tirar
mel do sol aos helicópteros?

Onde é que a lua cheia deixou
o seu saco nocturno de farinha?

II

Se já morri e não me dei conta
a quem perguntarei a hora?

De onde tira tantas folhas
a Primavera de França?

Onde pode viver um cego
perseguido por abelhas?

Se se acabar o amarelo
com que é que vamos fazer o pão?

III

Diz-me, a rosa está nua,
ou só tem esse vestido?

Porque é que as árvores escondem
o esplendor das suas raízes?

Quem ouve os remorsos
do automóvel criminoso?

Haverá algo mais triste no mundo
que um comboio imóvel na chuva?


IV

Quantas igrejas tem o céu?

Porque não atacará o tubarão
as impávidas sereias?

Conversará o fumo com as nuvens?

É verdade que as esperanças
se devem regar com orvalho?


V

Que guardas na tua bossa?
perguntou o camelo à tartaruga.

E a tartaruga perguntou:
E tu, que conversas tens com as laranjas?

Terá mais folhas uma pereira
que em Busca do Tempo Perdido?

Porque se suicidam as folhas
quando se sentem amarelas?

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Analfabetos !


Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem

Face oculta dos progressos técnicos.




Os progressos técnicos, que toda a gente está confundindo cada vez mais com progresso humano, vão criar cada vez mais também um suplemento de ócio que, excelente em si próprio, porque nos aproxima exactamente daquele contemplar dos lírios e das aves que deve ser nosso ideal, vai criar, olhado à nossa escala, uma força de ataque e de triunfo; mais gente vai ter cada vez mais tempo para ouvir rádio e para ir ao cinema, para frequentar museus, para ler revistas ou para discutir política, e sem que preparo algum lhe possa ter sido dado para utilizar tais meios de cultura: a consequência vai ser a de que a qualidade do que for fornecido vai descer cada vez mais e a de que tudo o que não for compreendido será destruído; raros novos beneditinos salvarão da pilhagem geral a sempre reduzida antologia que em tais coisas é possível salvar-se.
O choque mais violento vai dar-se exactamente, como era natural, nos países em que existir uma liberdade maior; nos outros, as formas autoritárias de regime de certo modo poderão canalizar mais facilmente a Humanidade para a utilização desse ócio; sucederá, porém, o seguinte: nos países não-livres, porque nenhum há livre, mas enfim mais livres, algumas consciências se erguerão dos destroços e pacientemente, com todas as modificações que houver a fazer, converterão o bárbaro ao antigo e sempre eterno ideal de «vida conversável»; nos outros, a não sobrevir uma revolução causada pelo tédio ou pelo próprio desabar da outra metade do mundo, o trabalho será mais difícil porque se terá de arrancar os homens, no seu conjunto, à ideia de que o que vale é a segurança material, o conforto técnico e, se for possível, nenhum rumor de pensamento dialogado.
Esta não já invasão mas explosão de bárbaros terminará a nossa Idade Média, aquela que veio ininterruptamente, só superficialmente mudando de aspecto, desde o século III ou IV até nossos dias, e que se caracterizará talvez pelo esforço de fazer regressar o homem de uma vida social a uma vida natural.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

A beleza de um corpo nu !


A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensibilidade como o obstáculo para a energia.
Fernando Pessoa

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Os juízes analfabetos!

Só por Alvará de 13 de Janeiro de 1642 se proibiu que os analfabetos fossem juízes! Já muito antes, nas cortes de Leiria/Santarém de 1433, os concelhos pediram sem sucesso que os corregedores fossem homens letrados, discretos e competentes em matéria de direito, bem como nas cortes de Évora de 1481-82 (VB-224)
Do mesmo modo, muitos padres eram analfabetos, incluindo muitos papas - o que não deve causar espanto porque não se lia a Bíblia que, ainda por cima, era escrita em Latim.

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Caridade hipócrita.

Nos últimos tempos, preocupava-o sobretudo as misérias das classes - por sentir que nestas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornavam mais secas e menos capazes de piedade.
«A Fraternidade (dizia ele numa carta de 1886, que conservo) vai-se sumindo, principalmente nestas vastas colmeias de cal e pedra onde os homens teimam em se amontoar e lutar; e, através do constante desaparecimento dos costumes e das simplicidades rurais, o Mundo vai rolando a um egoísmo feroz. A primeira evidência deste egoísmo é o desenvolvimento ruidoso da filantropia. Desde que a caridade se organiza e se consolida em instituição, com regulamentos, relatórios, comités, sessões, um presidente e uma campainha, e do sentimento natural passa a função oficial - é porque o homem, não contando já com os impulsos do seu coração, necessita obrigar-se publicamente ao bem pelas prescrições dum estatuto.Com os corações assim duros e os Invernos tão longos, que vai ser dos pobres?...»

Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes'

Silogismos.



de Ana Luísa Amaral


A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.

Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.

A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?

Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.

(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)

terça-feira, 8 de julho de 2008

Salazarices!

Solidão...


meu medo é ficar sozinho.
abraço o primeiro copo
agarro o primeiro corpo
e amo na mais completa solidão

Caranguejola.



Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
P'lo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde.
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará
P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. C'o a breca! levem-me p'rá enfermaria -
Isto é: p'ra um quarto particular que o meu pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital - higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras.
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Mário de Sá Carneiro

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Os Lusíados-canto IV

Canto Quarto

1

"Depois de procelosa tempestade,
Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o sol a negra escuridade,
Removendo o temor do pensamento:
Assim no Reino forte aconteceu,
Depois que o Rei Fernando faleceu.

2

"Porque, se muito os nossos desejaram
Quem os danos e ofensas vá vingando
Naqueles que tão bem se aproveitaram
Do descuido remisso de Fernando,
Depois de pouco tempo o alcançaram,
Joane, sempre ilustre, alevantando
Por Rei, como de Pedro único herdeiro,
(Ainda que bastardo) verdadeiro.

3

"Ser isto ordenação dos céus divina,
Por sinais muito claros se mostrou,
Quando em Évora a voz de uma menina,
Ante tempo falando o nomeou;
E como cousa enfim que o Céu destina,
No berço o corpo e a voz alevantou:
- "Portugal! Portugal!" alçando a mão
Disse "pelo Rei novo, Dom João." -

4

"Alteradas então do Reino as gentes
Co'o ódio, que ocupado os peitos tinha,
Absolutas cruezas e evidentes
Faz do povo o furor por onde vinha;
Matando vão amigos e parentes
Do adúltero Conde e da Rainha,
Com quem sua incontinência desonesta
Mais (depois de viúva) manifesta.

5

"Mas ele enfim, com causa desonrado,
Diante dela a ferro frio morre,
De outros muitos na morte acompanhado,
Que tudo o fogo erguido queima e corre:
Quem, como Astianás, precipitado,
(Sem lhe valerem ordens) de alta torre,
A quem ordens, nem aras, nem respeito;
Quem nu por ruas, e em pedaços feito.

6

"Podem-se pôr em longo esquecimento
As cruezas mortais que Roma viu
Feitas do feroz Mário e do cruento
Sila, quando o contrário lhe fugiu.
Por isso Lianor, que o sentimento
Do morto Conde ao mundo descobriu,
Faz contra Lusitânia vir Castela,
Dizendo ser sua filha herdeira dela.

7

"Beatriz era a filha, que casada
Co'o Castelhano está, que o Reino pede,
Por filha de Fernando reputada,
Se a corrompida fama lhe concede.
Com esta voz Castela alevantada,
Dizendo que esta filha ao pai sucede,
Suas forças ajunta para as guerras
De várias regiões e várias terras.

8

Vem de toda a província que de um Brigo
(Se foi) já teve o nome derivado;
Das terras que Fernando e que Rodrigo
Ganharam do tirano e Mauro estado.
Não estimam das armas o perigo
Os que cortando vão co'o duro arado
Os campos Lioneses, cuja gente
C'os Mouros foi nas armas excelente.

9

"Os Vândalos, na antiga valentia
Ainda confiados, se ajuntavam
Da cabeça de toda Andaluzia,
Que do Guadalquibir as águas lavam.
A nobre Ilha também se apercebia,
Que antigamente os Tírios habitavam,
Trazendo por insígnias verdadeiras
As Hercúleas colunas nas bandeiras.

10

"Também vem lá do Reino de Toledo,
Cidade nobre e antiga, a quem cercando
O Tejo em torno vai suave e ledo
Que das serras de Conca vem manando.
A vós outros também não tolhe o medo,
Ó sórdidos Galegos, duro bando,
Que para resistirdes vos armastes,
Aqueles, cujos golpes já provasses.

11

"Também movem da guerra as negras fúrias
A gente Biscainha, que carece
De polidas razões, e que as injúrias
Muito mal dos estranhos compadece.
A terra de Guipúscua e das Astúrias,
Que com minas de ferro se enobrece,
Armou dele os soberbos moradores,
Para ajudar na guerra a seus senhores.

12

"Joane, a quem do peito o esforço cresce,
Como a Sansão Hebréio da guedelha,
Posto que tudo pouco lhe parece,
Co'os poucos de seu Reino se aparelha;
E não porque conselho lhe falece,
Co'os principais senhores se aconselha,
Mas só por ver das gentes as sentenças:
Que sempre houve entre muitos diferenças.

13

"Não falta com razões quem desconcerte
Da opinião de todos, na vontade,
Em quem o esforço antigo se converte
Em desusada e má deslealdade;
Podendo o temor mais, gelado, inerte,
Que a própria e natural fidelidade:
Negam o Rei e a pátria, e, se convém,
Negarão (como Pedro) o Deus que têm.

14

"Mas nunca foi que este erro se sentisse
No forte Dom Nuno Alvares; mas antes,
Posto que em seus irmãos tão claro o visse,
Reprovando as vontades inconstantes,
Aquelas duvidosas gentes disse,
Com palavras mais duras que elegantes,
A mão na espada, irado, e não facundo,
Ameaçando a terra, o mar e o mundo:

15

- "Como!Da gente ilustre Portuguesa
Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?,
Como!Desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda a parte,
Há-de sair quem negue ter defesa?
Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte
De Português, e por nenhum respeito
O próprio Reino queira ver sujeito?

16

- "Como!Não seis vós inda os descendentes
Daqueles, que debaixo da bandeira
Do grande Henriques, feros e valentes,
Vencestes esta gente tão guerreira?
Quando tantas bandeiras, tantas gentes
Puseram em fugida, de maneira
Que sete ilustres Condes lhe trouxeram
Presos, afora a presa que tiveram?

17

- "Com quem foram contino sopeados
Estes, de quem o estais agora vós,
Por Dinis e seu filho, sublimados,
Senão co'os vossos fortes pais, e avôs?
Pois se com seus descuidos, ou pecados,
Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,
Torne-vos vossas forças o Rei novo:
Se é certo que co'o Rei se muda o povo.

18

- "Rei tendes tal, que se o valor tiverdes
Igual ao Rei que agora alevantastes,
Desbaratareis tudo o que quiserdes,
Quanto mais a quem já desbaratasses.
E se com isto enfim vos não moverdes
Do penetrante medo que tomastes,
Atai as mãos a vosso vão receio,
Que eu só resistirei ao jugo alheio.

19

- "Eu só com meus vassalos, e com esta
(E dizendo isto arranca meia espada)
Defenderei da força dura e infesta
A terra nunca de outrem sojugada.
Em virtude do Rei, da pátria mesta,
Da lealdade já por vós negada,
Vencerei (não só estes adversários)
Mas quantos a meu Rei forem contrários."-

20

Bem como entre os mancebos recolhidos
Em Canúsio, relíquias sós de Canas,
Já para se entregar quase movidos
A fortuna das forças Africanas,
Cornélio moço os faz que, compelidos
Da sua espada, jurem que as Romanas
Armas não deixarão, enquanto a vida
Os não deixar, ou nelas for perdida:

21

"Destarte a gente força e esforça Nuno,
Que, com lhe ouvir as últimas razões,
Removem o temor frio, importuno,
Que gelados lhe tinha os corações.
Nos animais cavalgam de Neptuno,
Brandindo e volteando arremessões;
Vão correndo e gritando a boca aberta:
- "Viva o famoso Rei que nos liberta!"-

22

"Das gentes populares, uns aprovam
A guerra com que a pátria se sustinha;
Uns as armas alimpam e renovam,
Que a ferrugem da paz gastadas tinha;
Capacetes estofam, peitos provam,
Arma-se cada um como convinha;
Outros fazem vestidos de mil cores,
Com letras e tenções de seus amores.

23

"Com toda esta lustrosa companhia
Joane forte sai da fresca Abrantes,
Abrantes, que também da fonte fria
Do Tejo logra as águas abundantes.
Os primeiros armígeros regia
Quem para reger era os mui possantes
Orientais exércitos, sem conto,
Com que passava Xerxes o Helesponto.

24

"Dom Nuno Alvares digo, verdadeiro
Açoute de soberbos Castelhanos
Como já o fero Huno o foi primeiro
Para Franceses, para Italianos.
Outro também famoso cavaleiro,
Que a ala direita tem dos Lusitanos,
Apto para mandá-los, e regê-los,
Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.

25

"E da outra ala, que a esta corresponde,
Antão Vasques de Almada é capitão,
Que depois foi de Abranches nobre Conde,
Das gentes vai regendo a sestra mão.
Logo na retaguarda não se esconde
Das quinas e castelos o pendão,
Com Joane, Rei forte em toda parte,
Que escurecendo o preço vai de Alarte.

26

"Estavam pelos muros, temerosas,
E de um alegre medo quase frias,
Rezando as mães, irmãs, damas e esposas,
Prometendo jejuns e romarias.
Já chegam as esquadras belicosas
Defronte das amigas companhias,
Que com grita grandíssima os recebem,
E todas grande dúvida concebem.

27

"Respondem as trombetas mensageiras,
Pífaros sibilantes e atambores;
Alférezes volteam as bandeiras,
Que variadas são de muitas cores.
Era no seco tempo, que nas eiras
Ceres o fruto deixa aos lavradores,
Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto,
Baco das uvas tira o doce mosto.

28

"Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso;
Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães, que o som terríbil escutaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.

29

"Quantos rostos ali se vêem sem cor,
Que ao coração acode o sangue amigo!
Que, nos perigos grandes, o temor
É maior muitas vezes que o perigo;
E se o não é, parece-o; que o furor
De ofender ou vencer o duro amigo
Faz não sentir que é perda grande e rara,
Dos membros corporais, da vida cara.

30

"Começa-se a travar a incerta guerra;
De ambas partes se move a primeira ala;
Uns leva a defensão da própria terra,
Outros as esperanças de ganhá-la;
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia.

31

"Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam;
Espedaçam-se as lanças; e as frequentes
Quedas coas duras armas, tudo atroam;
Recrescem os amigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca.

32

"Eis ali seus irmãos contra ele vão,
(Caso feio e cruel!) mas não se espanta,
Que menos é querer matar o irmão,
Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta:
Destes arrenegados muitos são
No primeiro esquadrão, que se adianta
Contra irmãos e parentes (caso estranho!)
Quais nas guerras civis de Júlio e Magno.

33

"Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos,
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos,
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algumas vezes.

34

"Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortíssimo leão,
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os campos vão correr de Tetuão:
Perseguem-no com as lanças, e ele iroso,
Torvado um pouco está, mas não medroso.

35

"Com torva vista os vê, mas a natura
Ferina e a ira não lhe compadecem
Que as costas dê, mas antes na espessura
Das lanças se arremessa, que recrescem.
Tal está o cavaleiro, que a verdura
Tinge co'o sangue alheio; ali perecem
Alguns dos seus, que o ânimo valente
Perde a virtude contra tanta gente.

36

"Sentiu Joane a afronta que passava
Nuno, que, como sábio capitão,
Tudo corria e via, e a todos dava,
Com presença e palavras, coração.
Qual parida leoa, fera e brava,
Que os filhos que no ninho sós estão,
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,
O pastor de Massília lhos furtara;

37

"Corre raivosa, e freme, e com bramidos
Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
Tal Joane, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à primeira ala:
-"Ó fortes companheiros, ó subidos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
Defendei vossas terras, que a esperança
Da liberdade está na vossa lança.

38

-"Vedes-me aqui, Rei vosso, e companheiro,
Que entre as lanças, e setas, e os arneses
Dos inimigos corro e vou primeiro:
Pelejai, verdadeiros Portugueses!"-
Isto disse o magnânimo guerreiro,
E, sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira; e, deste único tiro,
Muitos lançaram o último suspiro.

39

"Porque eis os seus acesos novamente
Duma nobre vergonha e honroso fogo,
Sobre qual mais com ânimo valente
Perigos vencerá do Márcio jogo,
Porfiam: tinge o ferro o sangue ardente;
Rompem malhas primeiro, e peitos logo:
Assim recebem junto e dão feridas,
Como a quem já não dói perder as vidas.

40

"A muitos mandam ver o Estígio lago,
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava:
O Mestre morre ali de Santiago,
Que fortíssimamente pelejava;
Morre também, fazendo grande estrago,
Outro Mestre cruel de Calatrava;
Os Pereiras também arrenegados
Morrem, arrenegando o Céu e os fados.

41

"Muitos também do vulgo vil sem nome
Vão, e também dos nobres, ao profundo,
Onde o trifauce Cão perpétua fome
Tem das almas que passam deste mundo.
E porque mais aqui se amanse e dome
A soberba do amigo furibundo,
A sublime bandeira Castelhana
Foi derribada aos pés da Lusitana.

42

"Aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas;
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor e sobejam as lançadas;
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê, e de seu propósito mudado.

43

"O campo vai deixando ao vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida.
Seguem-no os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Encobrem no profundo peito a dor
Da morte, da fazenda despendida,
Da mágoa, da desonra, e triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo.

44

"Alguns vão maldizendo e blasfemando
Do primeiro que guerra fez no mundo;
Outros a sede dura vão culpando
Do peito cobiçoso e sitibundo,
Que, por tomar o alheio, o miserando
Povo aventura às penas do profundo,
Deixando tantas mães, tantas esposas
Sem filhos, sem maridos, desditosas.

45

"O vencedor Joane esteve os dias
Costumados no campo, em grande glória;
Com ofertas depois, e romarias,
As graças deu a quem lhe deu vitória.
Mas Nuno, que não quer por outras vias
Entre as gentes deixar de si memória
Senão por armas sempre soberanas,
Para as terras se passa Transtaganas.

46

"Ajuda-o seu destino de maneira
Que fez igual o efeito ao pensamento,
Porque a terra dos Vândalos fronteira
Lhe concede o despojo e o vencimento.
Já de Sevilha a Bética bandeira
E de vários senhores num momento
Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa
Obrigados da força Portuguesa.

47

"Destas e outras vitórias longamente
Eram os Castelhanos oprimidos,
Quando a paz, desejada já da gente,
Deram os vencedores aos vencidos,
Depois que quis o Padre onipotente
Dar os Reis inimigos por maridos
As duas ilustríssimas Inglesas,
Gentis, formosas, ínclitas princesas.

48

"Não sofre o peito forte, usado à guerra,
Não ter amigo já a quem faça dano;
E assim não tendo a quem vencer na terra,
Vai cometer as ondas do Oceano.
Este é o primeiro Rei que se desterra
Da Pátria, por fazer que o Africano
Conheça, pelas armas, quanto excede
A lei de Cristo à lei de Mafamede.

49

"Eis mil nadantes aves pelo argento
Da furiosa Tethys inquieta
Abrindo as pandas asas vão ao vento,
Para onde Alcides pôs a extrema meta.
O monte Abila e o nobre fundamento
De Ceita toma, e o torpe Mahometa
Deita fora, e segura toda Espanha
Da Juliana, má, e desleal manha.

50

"Não consentiu a morte tantos anos
Que de Herói tão ditoso se lograsse
Portugal, mas os coros soberanos
Do Céu supremo quis que povoasse.
Mas para defensão dos Lusitanos
Deixou, quem o levou quem governasse,
E aumentasse a terra mais que dantes,
Inclita geração, altos Infantes.

51

"Não foi do Rei Duarte tão ditoso
O tempo que ficou na suma alteza,
Que assim vai alternando o tempo iroso
O bem co'o mal, o gosto coa tristeza.
Quem viu sempre um estado deleitoso?
Ou quem viu em fortuna haver firmeza?
Pois inda neste Reino e neste Rei
Não ousou ela tanto desta lei.

52

"Viu ser cativo o santo irmão Fernando,
Que a tão altas empresas aspirava,
Que, por salvar o povo miserando
Cercado, ao Sarraceno se entregava.
Só por amor da pátria está passando
A vida de senhora feita escrava,
Por não se dar por ele a forte Ceita:
Mais o público bem que o seu respeita.

53

"Codro, porque o inimigo não vencesse,
Deixou antes vencer da morte a vida;
Régulo, porque a pátria não perdesse,
Quis mais a liberdade ver perdida.
Este, porque se Espanha não temesse,
Ao cativeiro eterno se convida:
Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto,
Nem os Décios leais fizeram tanto.

54

"Mas Afonso, do Reino único herdeiro,
Nome em armas ditoso em nossa Hespéria,
Que a soberba do bárbaro fronteira
Tornou em baixa e humílima miséria,
Fora por certo invicto cavaleiro,
Se não quisera ir ver a terra Ibéria.
Mas África dirá ser impossíbil
Poder ninguém vencer o Rei terríbil.

55

"Este pôde colher as maçãs de ouro,
Que somente o Tiríntio colher pôde:
Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro
A cerviz inda agora não sacode.
Na fronte a palma leva e o verde louro
Das vitórias do Bárbaro, que acode
A defender Alcácer, forte vila,
Tângere populoso e a dura Arzila.

56

"Porém elas enfim por força entradas,
Os muros abaixaram de diamante
As Portuguesas forças, costumadas
A derribarem quanto acham diante.
Maravilhas em armas estremadas,
E de escritura dinas elegante,
Fizeram cavaleiros nesta empresa,
Mais afinando a fama Portuguesa.

57

"Porém depois, tocado de ambição
E glória de mandar, amara e bela,
Vai cometer Fernando de Aragão,
Sobre o potente Reino de Castela.
Ajunta-se a inimiga multidão
Das soberbas e várias gentes dela,
Desde Cádis ao alto Pireneu,
Que tudo ao Rei Fernando obedeceu.

58

"Não quis ficar nos Reinos ocioso
O mancebo Joane, e logo ordena
De ir ajudar o pai ambicioso,
Que então lhe foi ajuda não pequena.
Saiu-se enfim do trance perigoso
Com fronte não torvada, mas serena,
Desbaratado o pai sanguinolento
Mas ficou duvidoso o vencimento.

59

"Porque o filho sublime e soberano,
Gentil, forte, animoso cavaleiro,
Nos contrários fazendo imenso dano,
Todo um dia ficou no campo inteiro.
Desta arte foi vencido Octaviano,
E António vencedor, sem companheiro,
Quando daqueles que César mataram
Nos Filípicos campos se vingaram.

60

"Porém depois que a escura noite eterna
Afonso aposentou no Céu sereno,
O Príncipe, que o Reino então governa,
Foi Joane segundo e Rei trezeno.
Este, por haver fama sempiterna,
Mais do que tentar pode homem terreno
Tentou, que foi buscar da roxa Aurora
Os términos, que eu vou buscando agora.

61

"Manda seus mensageiros, que passaram
Espanha, França, Itália celebrada,
E lá no ilustre porto se embarcaram
Onde já foi Parténope enterra a:
Nápoles, onde os Xados se mostraram,
Fazendo-a a várias gentes subjugada,
Pola ilustrar no fim de tantos anos
Co'o senhorio de ínclitos Hispanos.

62

"Pelo mar alto Sículo navegam;
Vão-se às praias de Rodes arenosas;
E dali às ribeiras altas chegam,
Que com morte de Magno são famosas;
Vão a Mênfis e às terras, que se regam
Das enchentes Nilóticas undosas;
Sobem à Etiópia, sobre Egito,
Que de Cristo lá guarda o santo rito.

63

"Passam também as ondas Eritreias,
Que o povo de Israel sem nau passou;
Ficam-lhe atrás as serras Nabateias,
Que o filho de Ismael co'o nome ornou.
As costas odoríferas Sabeias,
Que a mãe do belo Adónis tanto honrou,
Cercam, com toda a Arábia descoberta
Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta.

64

"Entram no estreito Pérsico, onde dura
Da confusa Babel inda a memória;
Ali co'o Tigre o Eufrates se mistura,
Que as fontes onde nascem tem por glória.
Dali vão em demanda da água pura,
Que causa inda será de larga história,
Do Indo, pelas ondas do Oceano,
Onde não se atreveu passar Trajano.

65

"Viram gentes incógnitas e estranhas
Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,
Vendo vários costumes, várias manhas,
Que cada região produze e cria.
Mas de vias tão ásperas, tamanhas,
Tornar-se facilmente não podia:
Lá morreram enfim, e lá ficaram,
Que à desejada pátria não tornaram.

66

"Parece que guardava o claro Céu
A Manuel, e seus merecimentos,
Esta empresa tão árdua, que o moveu
A subidos e ilustres movimentos:
Manuel, que a Joane sucedeu
No Reino e nos altivos pensamentos,
Logo, corno tornou do Reino o cargo,
Tomou mais a conquista do mar largo.

67

"O qual, como do nobre pensamento
Daquela obrigação, que lhe ficara
De seus antepassados, (cujo intento
Foi sempre acrescentar a terra cara)
Não deixasse de ser um só momento
Conquistado: no tempo que a luz clara
Foge, e as estrelas nítidas, que saem,
A repouso convidam quando caem,

68

"Estando já deitado no áureo leito,
Onde imaginações mais certas são?
Revolvendo contino no conceito
Seu ofício e sangue a obrigação,
Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
Sem lhe desocupar o coração;
Porque, tanto que lasso se adormece,
Morfeu em várias formas lhe aparece.

69

"Aqui se lhe apresenta que subia
Tão alto, que tocava a prima Esfera,
Donde diante vários mundos via,
Nações de muita gente estranha e fera;
E lá bem junto donde nasce o dia,
Depois que os olhos longos estendera,
Viu de antigos, longínquos e altos montes
Nascerem duas claras e altas fontes.

70

"Aves agrestes, feras e alimárias,
Pelo monte selvático habitavam;
Mil árvores silvestres e ervas várias
O passo e o tracto às gentes atalhavam.
Estas duras montanhas, adversárias
De mais conversação, por si mostravam
Que, desque Adão pecou aos nossos anos,
Não as romperam nunca pés humanos.

71

"Das águas se lhe antolha que saíam,
Para ele os largos passos inclinando,
Dois homens, que mui velhos pareciam,
De aspecto, inda que agreste, venerando:
Das pontas dos cabelos lhe caíam
Gotas, que o corpo vão banhando;
A cor da pele baça e denegrida,
A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.

72

"Dambos de dois a fronte coroada
Ramos não conhecidos e ervas tinha;
Um deles a presença traz cansada,
Como quem de mais longe ali caminha.
E assim a água, com ímpeto alterada,
Parecia que doutra parte vinha,
Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa
Vai buscar os abraços de Aretusa.

73

"Este, que era o mais grave na pessoa,
Destarte para o Rei de longe brada:
- "Ó tu, a cujos reinos e coroa
Grande parte do mundo está guardada,
Nós outros, cuja fama tanto voa,
Cuja cerviz bem nunca foi domada,
Te avisamos que é tempo que já mandes
A receber de nós tributos grandes.

74

- "Eu sou o ilustre Ganges, que na terra
Celeste tenho o berço verdadeiro;
Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra
Que vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-te-emos contudo dura guerra;
Mas insistindo tu, por derradeiro,
Com não vistas vitórias, sem receio,
A quantas gentes vês, porás o freio."-

75

"Não disse mais o rio ilustre e santo,
Mas ambos desaparecem num momento.
Acorda Emanuel c'um novo espanto
E grande alteração de pensamento.
Estendeu nisto Febo o claro manto
Pelo escuro Hemisfério sonolento;
Veio a manhã no céu pintando as cores
De pudibunda rosa e roxas flores.

76

"Chama o Rei os senhores a conselho,
E propõe-lhe as figuras da visão;
As palavras lhe diz do santo velho,
Que a todos foram grande admiração.
Determinam o náutico aparelho,
Para que com sublime coração
Vá a gente que mandar cortando os mares
A buscar novos climas, novos ares.

77

"Eu, que bem mal cuidava que em efeito
Se pusesse o que o peito me pedia,
Que sempre grandes cousas deste jeito
Pressago o coração me prometia,
Não sei por que razão, por que respeito,
Ou por que bom sinal que em mi se via,
Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave
Deste cometimento grande e grave.

78

"E com rogo o palavras amorosas,
Que é um mando nos Reis, que a mais obriga,
Me disse: — "As cousas árduas e lustrosas
Se alcançam com trabalho e com fadiga;
Faz as pessoas altas e famosas
A vida que se perde e que periga;
Que, quando ao medo infame não se rende,
Então, se menos dura, mais se estende.

79

- "Eu vos tenho entre todos escolhido
Para uma empresa, qual a vós se deve,
Trabalho ilustre, duro e esclarecido,
O que eu sei que por mi vos será leve."-
Não sofri mais, mas logo: — "Ó Rei subido,
Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,
É tão pouco por vós, que mais me pena
Ser esta vida cousa tão pequena.

80

- "Imaginai tamanhas aventuras,
Quais Euristeu a Alcides inventava,
O leão Cleoneu, Harpias duras,
O porco de Erimanto, a Hidra brava,
Descer enfim às sombras vãs e escuras
Onde os campos de Dite a Estige lava;
Porque a maior perigo, a mor afronta,
Por vós, ó Rei, o espírito e a carne é pronta."

81

"Com mercês sumptuosas me agradece
E com razões me louva esta vontade;
Que a virtude louvada vive e cresce,
E o louvor altos casos persuade.
A acompanhar-me logo se oferece,
Obrigado d'amor e d'amizade,
Não menos cobiçoso de honra e fama,
O caro meu irmão Paulo da Gama.

82

"Mais se me ajunta Nicolau Coelho,
De trabalhos mui grande sofredor;
Ambos são de valia e de conselho,
De experiência em armas e furor.
Já de manceba gente me aparelho,
Em que cresce o desejo do valor;
Todos de grande esforço; e assim parece
Quem a tamanhas cousas se oferece.

83

"Foram de Emanuel remunerados,
Porque com mais amor se apercebessem,
E com palavras altas animados
Para quantos trabalhos sucedessem.
Assim foram os Mínias ajuntados,
Para que o Véu dourado combatessem,
Na fatídica Nau, que ousou primeira
Tentar o mar Euxínio, aventureira.

84

"E já no porto da ínclita Ulisseia
C'um alvoroço nobre, e é um desejo,
(Onde o licor mistura e branca areia
Co'o salgado Neptuno o doce Tejo)
As naus prestes estão; e não refreia
Temor nenhum o juvenil despejo,
Porque a gente marítima e a de Marte
Estão para seguir-me a toda parte.

85

"Pelas praias vestidos os soldados
De várias cores vêm e várias artes,
E não menos de esforço aparelhados
Para buscar do inundo novas partes.
Nas fortes naus os ventos sossegados
Ondeam os aéreos estandartes;
Elas prometem, vendo os mares largos,
De ser no Olimpo estrelas como a de Argos.

86

"Depois de aparelhados desta sorte
De quanto tal viagem pede e manda,
Aparelhamos a alma para a morte,
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
Para o sumo Poder que a etérea corte
Sustenta só coa vista veneranda,
Imploramos favor que nos guiasse,
E que nossos começos aspirasse.

87

"Partimo-nos assim do santo templo
Que nas praias do mar está assentado,
Que o nome tem da terra, para exemplo,
Donde Deus foi em carne ao mundo dado.
Certifico-te, ó Rei, que se contemplo
Como fui destas praias apartado,
Cheio dentro de dúvida e receio,
Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

88

"A gente da cidade aquele dia,
(Uns por amigos, outros por parentes,
Outros por ver somente) concorria,
Saudosos na vista e descontentes.
E nós coa virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes,
Em procissão solene a Deus orando,
Para os batéis viemos caminhando.

89

"Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam;
As mulheres c'um choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam;
Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperarão, e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.

90

"Qual vai dizendo: -" Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!" -

91

"Qual em cabelo: -"Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?" -

92

"Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.

93

"Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

94

"Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

95

- "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

96

- "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

97

- "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?

98

- "Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:

99

- "Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidades
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:

100

- "Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

101

- "Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?

102

- "Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.

103

- "Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!

104

- "Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!"

Conversas vadias. I

Preso por amor de rei!

D. Francisco Manuel de Melo, um dos 3 maiores escritores do séc. XVII em Portugal (e ignorado por cá), foi também um grande espadachim!
Uma noite, enciumado, travou duelo com um opositor, ferindo-o, sabendo depois que era o próprio D. João IV! Assim se explica o ódio do rei!
Um processo na Justiça levou-o a tribunal e ao degredo para o Brasil, apesar da carta do poderoso Luís XIV de França! Continuou preso mesmo depois dos homicidas e mandantes do crime terem sido descobertos! D. Francisco Manuel de Melo incomodava alguém poderoso!
Só lhe foi possível voltar a Portugal após a morte do rei (Fernando Campos, autor do romance histórico “ O Prisioneiro da Torre Velha”, Jornal de Letras, 10/12/03: 22)

domingo, 6 de julho de 2008

Literatura.


Leitura para a próxima quinzena.

Em 1974, uma revolução em Lisboa apanha de surpresa centenas de milhares de portugueses que vivem em Angola. A partir desse dia inicia-se a derrocada imparável de uma sociedade inteira que, tal como um navio a afundar-se, está condenada à destruição e à ruína. Em escassos meses, trezentos mil portugueses são obrigados a largar tudo e a fugir, embarcando numa ponte aérea e marítima que marca o maior êxodo da história deste povo. Para trás ficam as suas casas, os carros e até os animais de estimação. Empresas, fábricas, comércio e fazendas são abandonados enquanto Luanda, a capital da jóia da coroa do império português, é abalada por uma guerra civil que alastra ao resto do território angolano. Três movimentos de libertação, cujos exércitos estavam derrotados a 25 de Abril de 1974, estão novamente activos e combatem entre eles pelo poder deixado vazio pelas Forças Armadas portuguesas. É neste cenário de total desorientação social e de insegurança generalizada que Nuno, um aventureiro que há anos atravessa os céus do sertão angolano no seu avião, Regina e o filho de ambos se movem, numa extraordinária luta para sobreviverem à violência diária, às perseguições políticas, às intrigas e traições que fazem de Luanda uma cidade desesperada.

"Blues"


já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu não tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
nos lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: - morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

De Vasco Graça Moura.

Escolher a felecidade.




Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos outros se dão. Está-se aqui tão sozinho como no nascer e no morrer; como de um modo geral no viver, em que a única companhia possível é a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente e a dos que neles estão, a de seus santos. Felicidade ou paz nós as construímos ou destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa mesmo para todos, a podemos transformar em positiva. Para o fazermos, se exige pouco, mas um pouco que é na realidade extremamente difícil e que não atingiremos nunca por nossas próprias forças: exige-se de nós, primacialmente, a humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos, mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de tudo, o que há é um acto de decisão individual, um acto de escolha; posso ser, se tal me agradar, infeliz e inquieto.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

Indagações.


Quem procura acha?
Quem espera sempre alcança?
A cavalo dado não se olha os dentes?
Melhor um pássaro na mão, que dois a voar?
Amar é dar o que não se tem?
Em terra de cego quem tem um olho é rei?
Tal pai tal filho?
Filho de peixe peixinho é?
Quem com ferro fere com ferro será ferido?
Em sua própria casa um profeta não faz milagres?
Diz-me com quem andas , te direi quem és?
O hábito do cachimbo faz a boca torta?
O bom filho à casa torna?
É de pequeno que se torce o pepino?
Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão?
Em boca fechada não entra mosca?
Devagar se vai ao longe?
A ocasião faz o ladrão?
Quem ama o feio bonito lhe parece?
Deus ajuda a quem cedo madruga?
Quem tem boca vai a Roma?
Pimenta nos olhos dos outros é refresco!
Cada um sabe onde o sapato aperta!
Retribui mal ao mestre quem permanece para sempre discípulo?
Mestre é quem de repente aprende?
Casa de ferreiro, espeto de pau?
Viver é muito perigoso?
É Deus?
É o diabo?
É o carro enguiçado?
É Deus quem sabe do profundo e do escondido?
Olho por olho, dente por dente?
As palavras voam?
O escrito permanece?
A desculpa do aleijado é a muleta?
Quem quer bem feito não manda fazer, faz?
Gato escondido com rabo de fora?
Ri melhor quem ri por último?
É o ódio que mantém o homem vivo?
É o amor?
Todos os caminhos levam a Deus?
Você é responsável por aquilo de cativa?
É proibido proibir?
Deus está morto?
Então tudo é permitido?
Ou tudo é proibido?
Clementine diz sabe que tudo isso vai acabar? O que faremos?
Joel responde: aproveitamos?
Será?
Já olhou o mar hoje? Ou as montanhas? Ou o céu?
Já saboreou cada momento, este momento, como um faminto devora um prato de comida como se fosse o último prato de comida?
Somos cadáveres adiados que procriam?
Você não pertence a mim?
Você não pertence a ninguém?
O pior cego é o que não quer ver?
Não deixes a tua mão esquerda saber o que fez a direita?
Viver é um processo de demolição?
Quem cala, consente?
Minha casa é meu chapéu?
O meu lugar é onde você quer que ele seja?
Tudo o que vive deve morrer?
Deus está connosco até o pescoço?
Mais luz?
Vejo a vida melhor no futuro?
Nada se cria, tudo se copia?
Tudo é divino maravilhoso?
O freguês tem sempre razão?
Todos teremos 15 minutos de fama?
À noite todos os gatos são pardos?
Somos todos iguais perante à lei?
Somos todos iguais?
O que sobe desce?
Nascemos entre urinas e fezes?
Há muitas manhãs que ainda não despontaram?
Aonde leva o caminho do campo?
Nada será como antes?
Os dados ainda estão rolando?
Deus não joga dados?
Sou o que sou?
Ou o que pareço ser?
Sou o que não sei?
Ser ou ter?
Matar ou morrer?
Ficar ou correr?
O que fazemos enquanto estamos aqui?
O que não me mata me fortalece?
Falem mal mas falem de mim?
Quem é vivo sempre aparece?
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena?
É a estrada?
É o fim do caminho?
É o corpo sozinho?
Temos todo o tempo do mundo
É melhor ser escravo na terra que senhor no céu?
É melhor ser senhor no inferno que escravo no céu? (Lúcifer divaga)
Deus está surdo?
Deus está mudo?
Deus está morto?
Mais vale viver 10 anos a mil que mil anos a dez?
Quem sabe sabe?
O jogo é jogado?
A verdade está lá fora?
Quem não sabe brincar não brinca?
Tudo o que retorna é o mesmo?
Tudo retorna?
O que fazemos na vida ecoa na eternidade?
Deve-se levar vantagem em tudo?

Perguntar ofende?

sábado, 5 de julho de 2008

Deusa do amor.

A bomba atómica.





e=mc2
Einstain.


Deusa,visão dos céus que me dominam
...tu que és mulher e nada mais!

Declaração de amor a uma romana do século segundo.

Um dia passaste pelos meus versos
Como eu agora passo por diante destas esculturas
que não merecem mais que um apressado olhar
Mas na tua presença eu tenho de parar
dama desconhecida com certeza viva mais aqui
que no segundo século em Roma onde viveste
Moldaram-te esse rosto abriram-te esse olhar
decerto impressionante para que uns dezoito séculos mais tarde
te pudesse encontrar quem mais que tu morreu
mas te ama ó mulher perdidamente
Não mais te esquecerei hei-de sonhar contigo
sei que te conquistei e libertei
de qualquer compromisso que tivesses
Ninguém sabe quem eras nem eu próprio
não tens sequer um nome uns apelidos
nada se sabe acerca do teu estado civil
Sei mais que tudo isso porque sei
que atravessaste séculos na forma de escultura
só para um dia nós nos encontrarmos
Tenho mulher e filhos sou de longe
a lei é rígida e severa a sociedade
Não te importes mulher deixa-te estar
não penses não te mexas podes estar certa
de que me deste mais do que tudo o demais que me pudesses dar
pois para ser diferente de quem era
bastou-me ver teu rosto e mais que ver olhar


Ruy Belo (1933-1978)
Transporte no Tempo, 1973

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Dia não-Luis Cilia

Gosto que há no mundo.




Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:

Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.



Manuel Maria Barbosa du Bocage

A cegueira da governação.




Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos Reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Príncipes, Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados, que estais em seu lugar: vedes as calamidades universais e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes o abuso do costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de tantas almas, dentro e fora da Cristandade? Ou o vedes ou não o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra: vedes as obrigações que se descarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.

Padre António Vieira, in "Sermões"

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A arte é tudo.


A Arte é Tudo
A arte é tudo porque só ela tem a duração - e tudo o resto é nada! As sociedades, os impérios são varridos da terra, com os seus costumes, as suas glórias, as suas riquezas: e se não passam da memória fugitiva dos homens, se ainda para eles se voltam piedosamente as curiosidades, é porque deles ficou algum vestígio de Arte, a coluna tombada dum palácio, ou quatro versos num pergaminho. As Religiões só sobrevivem pela arte, só ela torna os deuses verdadeiramente imortais - dando-lhes forma. A divindade só fica absolutamente divina - quando um cinzel de génio a fixa em mármore; inspira então o grande culto intelectual, que é o único desinteressado e o único consciente; já nada tem a sofrer do livre exame: entra na serena região dos Incontestáveis e só então deixa de ter ateus. O mais austero católico é ainda pagão, como se era em Cítera, diante da Vénus de Milo. E a Nossa Senhora do Céu só tem adorações unânimes e louvores sem contestação, quando é o pincel de Murillo que a ergue sobre o Orbe, loura e toucada de estrelas.
A arte é tudo - tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. Leónidas ou Péricles não bastariam para que a velha Grécia ainda vivesse, nova e radiosa, nos nossos espíritos: foi-lhe preciso ter Aristófanes e Ésquilo. Tudo é efémero e oco nas sociedades - sobretudo o que nelas mais nos deslumbra. Podes-me tu dizer quem foram no tempo de Shakespeare os grandes banqueiros e as formosas mulheres? Onde estão os sacos de ouro deles, e o rolar do seu luxo? Onde estão os claros olhos delas? Onde estão as rosas de Iorque que floriam então? Mas Shakespeare está realmente tão vivo como quando, no estreito tablado do Globe, ele dependurava a lanterna que devia ser a lua, triste e amorosamente invocada, alumiando o Jardim dos Capuletos. Está vivo duma vida melhor, porque o seu Espírito fulge com um sereno e contínuo esplendor, sem que o perturbem mais as humilhantes misérias da carne!

Eça de Queirós, in ' Notas Contemporâneas'