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domingo, 21 de fevereiro de 2010
Porque Andas tão Alegre?
Porque andas tu tão alegre quando eu me sinto triste, desesperadamente triste? Custa tanto ser desprezada quando se tem a consciência imaculada, como um arminho que coisa alguma fosse capaz de manchar! Custa tanto! Passo as noites e os dias na mesma ânsia febril, na mesma indecisão de farrapo ao vento, no mesmo não saber o que quero, o que hei-de pensar, o que hei-de, o que devo fazer. Tenho um culto pela minha dignidade de mulher, tenho o orgulho, o santo orgulho de ser sempre a mesma criatura que a vida, tão cheia de lama, não conseguiu salpicar. E assim, tudo em mim são sombras, indecisões, murmúrios, coisas que não entendo bem, que não distingo bem. Amigo, compreende-me e sente que eu não estou, que eu não posso estar alegre. Olha a minh'alma como se ela fosse uma pobre andorinha ferida que batesse as asas desesperadamente. Tenho medo, medo do futuro, medo do mundo, medo da vida que foi sempre má para mim. Tenho visto sempre a felicidade correr-me por entre os dedos como água límpida que coisa alguma sustém; tenho visto passar tudo, morrer tudo em volta de mim, como fantasmas que passassem ao longe, numa estrada cheia de sombras. E era tão bom ser feliz! Se eu pudesse algum dia ser um bocadinho feliz! Encostar a minha cabeça ao teu ombro, sorrir-te com os meus olhos que têm sido sempre tão tristes! Contar-te tudo, dizer-te tudo, mostrar-te o meu coração aberto de par em par como uma janela enorme que o luar iluminasse, que o luar vestisse de branco! Sentir-te os passos e correr para ti, com as loucas saudades dumas horas que tivessem sido anos! Tudo isto, tudo isto eu queria enfim, toda esta ternura eu queria enfim que me envolvesse como um perfume violento que me embriagasse. Tu andas contente e andas contente porquê?! Tu não vês, não sentes que não é possível a felicidade assim completa, absoluta como nós a queremos? A vida não é a imaginação, não é a fantasia, não é o sonho, a vida tem coisas a que nós temos de olhar e que são tão feias e tão más! Faz-me mal, às vezes, a tua alegria, como se ela fosse um sacrilégio. Ampara-me, ensina-me a crer, a ter confiança, diz a verdade mas a verdade que seja boa que me não faça chorar como esta verdade que eu trago dentro de mim como uma chaga a doer sempre. Entremos na vida e não sonhemos. Vamos os dois encarar de frente sem medo e sem cobardias a vida tal qual ela é para nós. Não façamos, pelo amor de Deus, castelos no ar que eles caem sempre e eu sou, infelizmente, da natureza das heras que se agarram com ânsia a todas as ruínas por tristes e escuras que sejam. Não me digas nada que não tenhas a certeza, a absoluta certeza de poder realizar, na minha, na nossa vida.
Florbela Espanca, in "Correspondência (1920)"
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2 comentários:
Obrigada Manuel por colocar no blogue um texto tão interessante e que eu não conhecia.
Um abraço,
Manuela
Bonito e triste
beijos
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