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quarta-feira, 24 de março de 2010

Desejo...


É melhor desejo sem posse que posse sem desejo ...

Em Louvor das Crianças




Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.

Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário'

Arremesso de palavras!


Há palavras levadas pelo vento
há de alegria
e contentamento
de tristeza
e sentimento...
Há palavras
que apenas são
discursos vãos
promessas vagas...
Há palavras amigas
bondosas
e eloquentes...
Há-as arremessadas
como pedras
Que ferem
que matam
na boca de bem falantes
para enganarem quem querem...

terça-feira, 23 de março de 2010

Sonhos


Tudo o que vemos ou nos parece vermos não é mais do que um sonho dentro de outro sonho ...

Voltar ao Passado .




E se procurarem saber porque é que todas as imaginações humanas, frescas ou murchas, tristes ou alegres, se voltam para o passado, curiosas de nele penetrarem, acharão sem dúvida que o passado é o nosso único passeio e o único lugar onde possamos escapar dos nossos aborrecimentos quotidianos, das nossas misérias, de nós mesmos. O presente é turvo e árido, o futuro está oculto.

Anatole France, in 'A Vida em Flor'

Primavera


Há em ti
Primavera florida
cheiros
perfumes coloridos
novos aromas
envoltos na brisa do vento
que embriagam meus sentidos...
Flores essências
que renovam o viver
novos apetites no amar
no querer...

segunda-feira, 22 de março de 2010

Poema da Água



A água também nasce pequenina

- nasce gota de orvalho ou de neblina...

A água também tem a sua infância

- quando apenas riacho cantarola

brinca de roda nos redemoinhos

salta os seixos que encontra

e faz apostas de corrida - travessa -

por entre as grotas e peraus

e arranca as flores que a marginam

para engrinaldar a cabeleira solta

sobre o leito revolto das areias...

A água também tem adolescência

- sonha lagos românticos à lua

fitando os astros namorados dela

embevecida em seus olhos de ouro...

e assim sempre amorosa e sonhadora

vai tecendo e bordando - dia e noite

o seu vestido de noiva nas montanhas

e o seu véu de noivado nas cascatas...

A água também tem maturidade

- fica serena e grave em rios fundos

e num destino generoso e amigo

espalha a vida que em si mesma encerra

semeia bençãos para o grão de trigo

abre caminhos líquidos da terra

e enlaça os povos através dos mares...

A água também tem sua velhice

-e de ver-lhe os cabelos muitos brancos

onda lenta de espuma destrinçada em neve, nos ares flutuando...

A água também sofre...e quando sofre

se faz divina e vem brilhar em lágrimas

ou se reflete a dor da natureza

geme no vento trnasformada em chuva.

A água também morre...e quando seca

- e a sua morte entristece tudo :

choram-lhe, enfim na desolação,

todos os seres vivos que a rodeiam

porque ela é o seio maternal da vida

e de tal maneira ama seus filhos rudes

que muitas vezes para os salvar se deixa

ficar sem o murmúrio de uma queixa

prisioneira de poços e açudes...

Bendita seja, pois, água divina

que fecunda, consola, dessedenta, purifica,

e que, desde pequenina,

feita gota de orvalho,

mata a sede das plantas entreabertas

e prepara o festivo esplendor da primavera...

e que, nascida em píncaros da serra

vem de tão alto, procurando sempre ter

um fim de planície e de humildade

até perder, na última renúncia,

o nome de batismo de seus rios

para ficar anônima nos mares.


Raul Machado

O Socorro




Ele foi cavando, foi cavando, cavando, pois sua profissão - coveiro - era cavar. Mas, de repente, na distracção do ofício que amava, percebeu que cavara de mais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia mais um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: «O que é que há?»
O coveiro então gritou, desesperado: «Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!». «Mas coitado!» - condoeu-se o bêbado. - «Tem toda razão de estar com frio.
Alguém tirou a terra toda de cima de você, meu pobre mortinho!». E, pegando na pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.
Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem para quem se apela

Millôr Fernandes, in 'Pif-Paf'

Transparências...


Teu corpo diáfano
cristalino
tuas formas destintas
transparentes
destingo nitidamente
tua pele
como um pedaço de tela branca...
Teu olhar límpido
brilhante
isento de obscuridade
cuja transparência me perturba...
Tua imagem translúcida
que deixa passar a luz
sem permitir ver teus contornos nítidos
despolidos
por mim
amados
sentidos...

domingo, 21 de março de 2010

Nocturna

Se os Poetas Dessem as Mãos .




Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia,
cairiam as grades das prisões
que nos tolhem os passos,
os arames farpados
que nos rasgam os sonhos,
os muros de silêncio,
as muralhas da cólera e do ódio,
as barreiras do medo,
e o Dia, como um pássaro liberto,
desdobraria enfim as asas
sobre a Noite dos homens.

Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia.

Fernanda de Castro.

Dia Mundial da Poesia.


A palavra quando é criação desnuda. A primeira virtude da poesia tanto para o poeta como para o leitor é a revelação do ser. A consciência das palavras leva à consciência de si: a conhecer-se e a reconhecer-se ...

Octavio Paz .

sábado, 20 de março de 2010

O morro dos ventos uivantes

Impulso.


Entrego-me cegamente ao impulso que me arrasta ...

Liberdade com Limites .




Há muitas espécies de liberdade. Umas tem o mundo de menos, outras tem o mundo de mais. Mas ao dizer que pode haver «de mais» de uma certa espécie de liberdade devo apressar-me a acrescentar que a única espécie de liberdade que considero indesejável é aquela que permite diminuir a liberdade de outrem, por exemplo, a liberdade de fazer escravos.
O mundo não pode garantir-se a maior quantidade possível de liberdade instituindo, pura e simplesmente, a anarquia, pois nesse caso os mais fortes seriam capazes de privar da liberdade os mais fracos. Duvido de que qualquer instituição social seja justificável se contribui para diminuir o quantitativo total de liberdade existente no mundo, mas certas instituições sociais são justificáveis apesar do facto de coarctarem a liberdade de um certo indivíduo ou grupo de indivíduos.
No seu sentido mais elementar, liberdade significa a ausência de controles externos sobre os actos de indivíduos ou grupos. Trata-se, portanto, de um conceito negativo, e a liberdade, por si só, não confere a uma comunidade qualquer alta valia.

Os Esquimós, por exemplo, podem dispensar o Governo, a educação obrigatória, o código das estradas, e até as complicações incríveis do código comercial. A sua vida, portanto, goza de um alto grau de liberdade; contudo, poucos homens civilizados prefeririam viver assim a viver no seio de uma comunidade mais organizada.
A liberdade é um requisito indispensável para a obtenção de muitas coisas valiosas; mas essas coisas valiosas têm de partir dos impulsos, desejos e crenças daqueles que desfrutam dessa liberdade. A existência de grandes poetas confere um certo brilho a uma comunidade, mas não se pode ter a certeza de que a comunidade produzirá grande poesia só pelo facto de não existir uma lei que a proíba. De uma maneira geral, consideramos justo que se obrigue a juventude a ler e a escrever, ainda que a maioria dos jovens preferisse o contrário; fazemo-lo porque acreditamos em bens positivos que só um alto grau de alfabetização torna possível. Mas, ainda que a liberdade não constitua o total das coisas socialmente desejáveis, é tão necessária para a obtenção da maioria delas, e corre tanto o risco de ser insensatamente limitada, que mal será possível exagerar a sua importância.

Bertrand Russell, in "Realidade e Ficção"

sexta-feira, 19 de março de 2010

A Vida não Está por Ordem Alfabética.




A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge... ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são miga­lhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e este grão que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado... até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.

António Tabucchi, in 'Tristano Morre'

Clássico dos Clássicos.




A recordação é o perfume da alma.

Fim de semana.


Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não me lembrar! Em tardes dolorosas
Eu lembro-me que fui a Primavera
Que em muros velhos fez nascer as rosas!

As minhas mãos, outrora carinhosas,
Pairavam como pombas... Quem soubera
Porque tudo passou e foi quimera,
E porque os muros velhos não dão rosas!

São sempre os que eu recordo que me esquecem...
Mas digo para mim: "Não me merecem..."
E já não fico tão abandonada!

Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha,
E também é nobreza não ter nada!

Florbela Espanca

quinta-feira, 18 de março de 2010

Interior


Mergulho nos meus pensamentos
respiro profundamente
dentro de mim
o mundo para...
Fora de mim tudo se movimenta
as plantas crescem
as pétalas desabrocham
os jardins florescem...
dentro de mim tudo é silêncio
ausência
sossego
tranquilidade
paixão
suplício...

Mariza em Antwerpen (ontem).


A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende