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domingo, 6 de julho de 2008

"Blues"


já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu não tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
nos lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: - morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

De Vasco Graça Moura.

Escolher a felecidade.




Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos outros se dão. Está-se aqui tão sozinho como no nascer e no morrer; como de um modo geral no viver, em que a única companhia possível é a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente e a dos que neles estão, a de seus santos. Felicidade ou paz nós as construímos ou destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa mesmo para todos, a podemos transformar em positiva. Para o fazermos, se exige pouco, mas um pouco que é na realidade extremamente difícil e que não atingiremos nunca por nossas próprias forças: exige-se de nós, primacialmente, a humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos, mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de tudo, o que há é um acto de decisão individual, um acto de escolha; posso ser, se tal me agradar, infeliz e inquieto.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

Indagações.


Quem procura acha?
Quem espera sempre alcança?
A cavalo dado não se olha os dentes?
Melhor um pássaro na mão, que dois a voar?
Amar é dar o que não se tem?
Em terra de cego quem tem um olho é rei?
Tal pai tal filho?
Filho de peixe peixinho é?
Quem com ferro fere com ferro será ferido?
Em sua própria casa um profeta não faz milagres?
Diz-me com quem andas , te direi quem és?
O hábito do cachimbo faz a boca torta?
O bom filho à casa torna?
É de pequeno que se torce o pepino?
Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão?
Em boca fechada não entra mosca?
Devagar se vai ao longe?
A ocasião faz o ladrão?
Quem ama o feio bonito lhe parece?
Deus ajuda a quem cedo madruga?
Quem tem boca vai a Roma?
Pimenta nos olhos dos outros é refresco!
Cada um sabe onde o sapato aperta!
Retribui mal ao mestre quem permanece para sempre discípulo?
Mestre é quem de repente aprende?
Casa de ferreiro, espeto de pau?
Viver é muito perigoso?
É Deus?
É o diabo?
É o carro enguiçado?
É Deus quem sabe do profundo e do escondido?
Olho por olho, dente por dente?
As palavras voam?
O escrito permanece?
A desculpa do aleijado é a muleta?
Quem quer bem feito não manda fazer, faz?
Gato escondido com rabo de fora?
Ri melhor quem ri por último?
É o ódio que mantém o homem vivo?
É o amor?
Todos os caminhos levam a Deus?
Você é responsável por aquilo de cativa?
É proibido proibir?
Deus está morto?
Então tudo é permitido?
Ou tudo é proibido?
Clementine diz sabe que tudo isso vai acabar? O que faremos?
Joel responde: aproveitamos?
Será?
Já olhou o mar hoje? Ou as montanhas? Ou o céu?
Já saboreou cada momento, este momento, como um faminto devora um prato de comida como se fosse o último prato de comida?
Somos cadáveres adiados que procriam?
Você não pertence a mim?
Você não pertence a ninguém?
O pior cego é o que não quer ver?
Não deixes a tua mão esquerda saber o que fez a direita?
Viver é um processo de demolição?
Quem cala, consente?
Minha casa é meu chapéu?
O meu lugar é onde você quer que ele seja?
Tudo o que vive deve morrer?
Deus está connosco até o pescoço?
Mais luz?
Vejo a vida melhor no futuro?
Nada se cria, tudo se copia?
Tudo é divino maravilhoso?
O freguês tem sempre razão?
Todos teremos 15 minutos de fama?
À noite todos os gatos são pardos?
Somos todos iguais perante à lei?
Somos todos iguais?
O que sobe desce?
Nascemos entre urinas e fezes?
Há muitas manhãs que ainda não despontaram?
Aonde leva o caminho do campo?
Nada será como antes?
Os dados ainda estão rolando?
Deus não joga dados?
Sou o que sou?
Ou o que pareço ser?
Sou o que não sei?
Ser ou ter?
Matar ou morrer?
Ficar ou correr?
O que fazemos enquanto estamos aqui?
O que não me mata me fortalece?
Falem mal mas falem de mim?
Quem é vivo sempre aparece?
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena?
É a estrada?
É o fim do caminho?
É o corpo sozinho?
Temos todo o tempo do mundo
É melhor ser escravo na terra que senhor no céu?
É melhor ser senhor no inferno que escravo no céu? (Lúcifer divaga)
Deus está surdo?
Deus está mudo?
Deus está morto?
Mais vale viver 10 anos a mil que mil anos a dez?
Quem sabe sabe?
O jogo é jogado?
A verdade está lá fora?
Quem não sabe brincar não brinca?
Tudo o que retorna é o mesmo?
Tudo retorna?
O que fazemos na vida ecoa na eternidade?
Deve-se levar vantagem em tudo?

Perguntar ofende?

sábado, 5 de julho de 2008

Deusa do amor.

A bomba atómica.





e=mc2
Einstain.


Deusa,visão dos céus que me dominam
...tu que és mulher e nada mais!

Declaração de amor a uma romana do século segundo.

Um dia passaste pelos meus versos
Como eu agora passo por diante destas esculturas
que não merecem mais que um apressado olhar
Mas na tua presença eu tenho de parar
dama desconhecida com certeza viva mais aqui
que no segundo século em Roma onde viveste
Moldaram-te esse rosto abriram-te esse olhar
decerto impressionante para que uns dezoito séculos mais tarde
te pudesse encontrar quem mais que tu morreu
mas te ama ó mulher perdidamente
Não mais te esquecerei hei-de sonhar contigo
sei que te conquistei e libertei
de qualquer compromisso que tivesses
Ninguém sabe quem eras nem eu próprio
não tens sequer um nome uns apelidos
nada se sabe acerca do teu estado civil
Sei mais que tudo isso porque sei
que atravessaste séculos na forma de escultura
só para um dia nós nos encontrarmos
Tenho mulher e filhos sou de longe
a lei é rígida e severa a sociedade
Não te importes mulher deixa-te estar
não penses não te mexas podes estar certa
de que me deste mais do que tudo o demais que me pudesses dar
pois para ser diferente de quem era
bastou-me ver teu rosto e mais que ver olhar


Ruy Belo (1933-1978)
Transporte no Tempo, 1973

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Dia não-Luis Cilia

Gosto que há no mundo.




Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:

Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.



Manuel Maria Barbosa du Bocage

A cegueira da governação.




Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos Reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Príncipes, Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados, que estais em seu lugar: vedes as calamidades universais e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes o abuso do costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de tantas almas, dentro e fora da Cristandade? Ou o vedes ou não o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra: vedes as obrigações que se descarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.

Padre António Vieira, in "Sermões"

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A arte é tudo.


A Arte é Tudo
A arte é tudo porque só ela tem a duração - e tudo o resto é nada! As sociedades, os impérios são varridos da terra, com os seus costumes, as suas glórias, as suas riquezas: e se não passam da memória fugitiva dos homens, se ainda para eles se voltam piedosamente as curiosidades, é porque deles ficou algum vestígio de Arte, a coluna tombada dum palácio, ou quatro versos num pergaminho. As Religiões só sobrevivem pela arte, só ela torna os deuses verdadeiramente imortais - dando-lhes forma. A divindade só fica absolutamente divina - quando um cinzel de génio a fixa em mármore; inspira então o grande culto intelectual, que é o único desinteressado e o único consciente; já nada tem a sofrer do livre exame: entra na serena região dos Incontestáveis e só então deixa de ter ateus. O mais austero católico é ainda pagão, como se era em Cítera, diante da Vénus de Milo. E a Nossa Senhora do Céu só tem adorações unânimes e louvores sem contestação, quando é o pincel de Murillo que a ergue sobre o Orbe, loura e toucada de estrelas.
A arte é tudo - tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. Leónidas ou Péricles não bastariam para que a velha Grécia ainda vivesse, nova e radiosa, nos nossos espíritos: foi-lhe preciso ter Aristófanes e Ésquilo. Tudo é efémero e oco nas sociedades - sobretudo o que nelas mais nos deslumbra. Podes-me tu dizer quem foram no tempo de Shakespeare os grandes banqueiros e as formosas mulheres? Onde estão os sacos de ouro deles, e o rolar do seu luxo? Onde estão os claros olhos delas? Onde estão as rosas de Iorque que floriam então? Mas Shakespeare está realmente tão vivo como quando, no estreito tablado do Globe, ele dependurava a lanterna que devia ser a lua, triste e amorosamente invocada, alumiando o Jardim dos Capuletos. Está vivo duma vida melhor, porque o seu Espírito fulge com um sereno e contínuo esplendor, sem que o perturbem mais as humilhantes misérias da carne!

Eça de Queirós, in ' Notas Contemporâneas'

Igualdades!


A majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão
Fonte: "O Lírio Vermelho"

Educação!


Educação sexual é dizer obrigado, no fim.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Constância vai transformar-se numa Tróia Sitiada.


Constância vai transformar-se numa Tróia sitiada

12 e 13 de Julho
Nos próximos dias 12 e 13 de Julho o Centro Histórico de Constância vai transformar-se numa Tróia sitiada, uma ocasião em que a vila recebe a representação das mais emocionantes cenas da Ilíada de Homero.



Denominado Vila Poema, o espectáculo integra a iniciativa um Verão de Festas no Parque Almourol, uma ocasião em que a Câmara Municipal de Constância e o Parque Almourol convidam o público a mergulhar na história da Vila Poema, numa celebração de alegria e de tradição, na vila que também acolheu Luís de Camões.



Produzidos pelo Mercado da Cultura, empresa a quem foram entregues os prémios Empresa Revelação 2007 e Melhor Evento Cultural 2007 (com os Jardins Históricos de Oeiras 2006) os espectáculos dos dias 12 e 13 de Julho englobam Teatro de Rua, em ambos os dias, das 17 às 20 horas e uma Ópera no dia 12, às 22 horas, na Praça Alexandre Herculano. Além das iniciativas já mencionadas, no Centro histórico estará também uma Feira do Livro, com um formato inédito, e na qual algumas obras, sobretudo as poéticas serão apresentadas por actores.



Teatro Ilíada, de Homero



Nenhuma outra história da cultura ocidental – com a possível excepção da Bíblia – inspirou tantos pintores ou escritores, a longo dos séculos, como a Guerra de Tróia (1200 a.c.). Fonte da inspiração de Luís de Camões, que viveu em Constância um exílio dourado (1547 – 1550), a população da vila narra, durante um fim-de-semana, o drama das mulheres da Ilíada, do grande poeta grego Homero.



As belas ruas e praças de Constância acolhem a representação de breves quadros teatrais, articulados com cavaleiros e valentes guerreiros que marcham, duelos de morte, mas também jogos e poesia, dança e muita música, que transformam a vila numa Tróia sitiada.



Ópera Dido e Eneias, de Purcell



O espectáculo de ópera Dido e Eneias de Purcell terá lugar em plena Praça Alexandre Herculano, com Direcção Cénica de Sílvia Mateus e Direcção Musical do Maestro Pedro Figueiredo.
Por CMC

Noz de fogo.


Tu me deste a Palavra, a noz do fogo
Se o miolo te ficou tenho os dedos queimados.
Dá Deus nozes, Senhor... Sem dentes, desde logo,
Teu Banquete revolta os desdentados.


O Pão esperou na Voz fome e saliva
Ninguém comeu senão da própria suficiência:
Ao menos o Menino tem gengiva,
Saboreia a inocência.


Tende piedade dos Críticos,
Dai-lhes o Best-Seller
Engrossarão o seu coro.
Tudo o que for Sentido - desterrado
E oculto no choro!


Fazei guardar por anjos
A Significação
E em nossa carne eles tenham
Ceva e consolação.
À entrada do Verbo, imo da Morte,
Ponde uma folha a espada:
Guardaremos a Vida e o sangue ao Norte
Do Nada.

Vitorino Nemésio

Verdades,esperiências e segredos!


Cada idade possui as suas verdades, as suas experiências, os seus segredos.

A potência do rei Afonso VI.

A POTÊNCIA DO REI AFONSO VI
O Rei D. Afonso VI era tão parvo que não conseguia arranjar mulher para si, excepto nos prostíbulos lisboetas, pelo que foi o Marquês de Sande (D. Francisco de Melo) a ir buscar mulher, D. Maria Francisca Isabel, na Casa de Sabóia (cujo brasão está no Paço real de Sintra). Chegada a 2/8/1666 a Lisboa, já casada, pede nos Tribunais Eclesiásticos a anulação do casamento, em 22/11/1667, com o fundamento na sua não consumação, por o rei ser impotente.
Formaram-se 2 partidos em Portugal: o da potência e o da impotência!
Os partidários da impotência admitiam o rei gostar da caça, mas que depois não era capaz de comê-la. Acrescentavam que a paralisia infantil não lhe colheu, apenas os membros do lado direito.
Os partidários da potência apontavam a frequência dos prostíbulos e a informação da rainha ir dar um filho!
A certa altura, para desempatar, os defensores da potência avançaram com um exame médico à virgindade da rainha!
Prevendo o mau resultado, opuseram-se ao exame, dizendo que o véu himenal é o selo de garantia com que o criador especializou a fêmea do homem e que o rompimento desse selo pelos dedos do examinador constituía uma forma grosseira, artificial, ensonsa e indigna de rasgar tal marca de autenticidade (VB-176/7)
O Papa Clemente IX deu a dispensa por motivo de impotência de Afonso VI, apesar do avançado estado de gravidez da rainha!

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terça-feira, 1 de julho de 2008

Cenas espinhosas !

Sentimentos.


Todos os sentimentos podem conduzir ao amor e à paixão. Todos: o ódio, a compaixão, a indiferença, a veneração, a amizade, o medo e até mesmo o desprezo. Sim, todos os sentimentos... excepto um: a gratidão. A gratidão é uma dívida: todo o homem paga as suas dívidas... mas o amor não é dinheiro
Fonte: "O Caminho para o Amor"

Os Lusíados-canto III




1

Agora tu, Calíope, me ensina
O que contou ao Rei o ilustre Gama:
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assim o claro inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,
Te negue o amor devido, como soe.

2

Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;
Que veja e saiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre e mana.
Deixa as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-me Apolo na água soberana;
Senão direi que tens algum receio,
Que se escureça o teu querido Orfeio.

3

Prontos estavam todos escutando
O que o sublime Gama contaria,
Quando, depois de um pouco estar cuidando,
Alevantando o rosto, assim dizia:
"Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia:
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.

4

"Que outrem possa louvar esforço alheio,
Cousa é que se costuma e se deseja;
Mas louvar os meus próprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E para dizer tudo, temo e creio,
Que qualquer longo tempo curto seja:
Mas, pois o mandas, tudo se te deve,
Irei contra o que devo, e serei breve.

5

"Além disso, o que a tudo enfim me obriga,
É não poder mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há-de ficar inda por dizer.
Mas, porque nisto a ordens leve e siga,
Segundo o que desejas de saber,
Primeiro tratarei da larga terra,
Depois direi da sanguinosa guerra.

6

"Entre a Zona que o Cancro senhoreia,
Meta setentrional do Sol luzente,
E aquela que por f ria se arreceia
Tanto, como a do meio por ardente,
Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,
Pela parte do Areturo, e do Ocidente,
Com suas salsas ondas o Oceano,
E pela Austral o mar Mediterrano.

7

"Da parte donde o dia vem nascendo,
Com Ásia se avizinha; mas o rio
Que dos montes Rifeios vai correndo,
Na alagoa Meotis, curvo o frio,
As divide: e o mar que, fero e horrendo,
Viu dos Gregos o irado senhorio,
Onde agora de Tróia triunfante
Não vê mais que a memória o navegante.

8

"Lá onde mais debaixo está do Pólo,
Os montes Hiperbóreos aparecem,
E aqueles onde sempre sopra Eolo,
E co'o nome, dos sopros se enobrecem.
Aqui tão pouca força tem de Apolo
Os raios que no mundo resplandecem,
Que a neve está contido pelos montes,
Gelado o mar, geladas sempre as fontes.

9

"Aqui dos Citas grande quantidade
Vivem, que antigamente grande guerra
Tiveram, sobre a humana antiguidade,
Co'os que tinham então a Egípcia terra;
Mas quem tão fora estava da verdade,
(Já que o juízo humano tanto erra)
Para que do mais certo se informara,
Ao campo Damasceno o perguntara.

10

"Agora nestas partes se nomeia
A Lápia fria, a inculta Noruega,
Escandinávia Ilha, que se arreia
Das vitórias que Itália não lhe nega.
Aqui, enquanto as águas não refreia
O congelado inverno, se navega
Um braço do Sarmático Oceano
Pelo Brúsio, Suécio e frio Dano.

11

"Entre este mar e o Tánais vive estranha
Gente: Rutenos, Moseos e Livónios,
Sármatas outro tempo; e na montanha
Hircínia os Marcomanos são Polónios.
Sujeitos ao Império de Alemanha
São Saxones, Boêmios e Panónios,
E outras várias nações, que o Reno frio
Lava, e o Danúbio, Amasis e Albis rio.

12

"Entre o remoto Istro e o claro Estreito,
Aonde Hele deixou co'o nome a vida,
Estão os Traces de robusto peito,
Do fero Marte pátria tão querida,
Onde, colo Hemo, o Ródope sujeito
Ao Otomano está, que submetida
Bizâncio tem a seu serviço indino:
Boa injúria do grande Constantino!

13

"Logo de Macedónia estão as gentes,
A quem lava do Axio a água fria;
E vós também, ó terras excelentes
Nos costumes, engenhos e ousadia,
Que criastes os peitos eloquentes
E os juízos de alta fantasia,
Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras,
E não menos por armas, que por letras.

14

"Logo os Dálmatas vivem; e no seio,
Onde Antenor já muros levantou,
A soberba Veneza está no meio
Das águas, que tão baixa começou.
Da terra um braço vem ao mar, que cheio
De esforço, nações várias sujeitou,
Braço forte, de gente sublimada,
Não menos nos engenhos, que na espada.

15

"Em torno o cerca o Reino Neptunino,
Co'os muros naturais por outra parte;
Pelo meio o divide o Apenino,
Que tão ilustre fez o pátrio Marte;
Mas depois que o Porteiro tem divino,
Perdendo o esforço veio, e bélica arte;
Pobre está já de antiga potestade:
Tanto Deus se contenta de humildade!

16

"Gália ali se verá que nomeada
Co'os Cesáreos triunfos foi no mundo,
Que do Séquana e Ródano é regada,
E do Giruna frio e Reno fundo.
Logo os montes da Ninfa sepultada
Pirene se alevantam, que segundo
Antiguidades contam, quando arderam,
Rios de ouro e de prata então correram.

17

"Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo senhorio o glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A fortuna inquieta pôr-lhe noda,
Que lhe não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria.

18

"Com Tingitânia entesta, e ali parece
Que quer fechar o mar Mediterrano,
Onde o sabido Estreito se enobrece
Co'o extremo trabalhado Tebano.
Com nações diferentes se engrandece,
Cercadas com as ondas do Oceano;
Todas de tal nobreza e tal valor,
Que qualquer delas cuida que é melhor.

19

"Tem o Tarragonês, que se fez claro
Sujeitando Parténope inquieta;
O Navarro, as Astúrias, que reparo
Já foram contra a gente Mahometa;
Tem o Galego cauto, e o grande e raro
Castelhano, a quem fez o seu Planeta
Restituidor de Espanha e senhor dela,
Bétis, Lião, Granada, com Castela.

20

"Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floresça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora, e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

21

"Esta é a ditosa pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela então os Íncolas primeiros.

22

"Desta o pastor nasceu, que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja fama ninguém virá que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.
Esta, o velho que os filhos próprios come
Por decreto do Céu, ligeiro e leve,
Veio a fazer no mundo tanta parte,
Criando-a Reino ilustre; e foi desta arte:

23

"Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,
Que fez aos Sarracenos tanta guerra,
Que por armas sanguinas, força e manha,
A muitos fez perder a vida o a terra;
Voando deste Rei a fama estranha
Do Herculano Calpe à Cáspia serra,
Muitos, para na guerra esclarecer-se,
Vinham a ele e à morte oferecer-se.

24

"E com um amor intrínseco acendidos
Da Fé, mais que das honras populares,
Eram de várias terras conduzidos,
Deixando a pátria amada e próprios lares.
Depois que em feitos altos e subidos
Se mostraram nas armas singulares,
Quis o famoso Afonso que obras tais
Levassem prémio digno e dons iguais.

25

"Destes Anrique, dizem que segundo
Filho de um Rei de Ungria exprimentado,
Portugal houve em sorte, que no mundo
Então não era ilustre nem prezado;
E, para mais sinal d'amor profundo,
Quis o Rei Castelhano, que casado
Com Teresa, sua filha, o Conde fosse;
E com ela das terras tornou posse.

26

"Este, depois que contra os descendentes
Da escrava Agar vitórias grandes teve,
Ganhando muitas terras adjacentes,
Fazendo o que a seu forte peito deve,
Em prémio destes feitos excelentes,
Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,
Um filho, que ilustrasse o nome ufano
Do belicoso Reino Lusitano.

27

"Já tinha vindo Anrique da conquista
Da cidade Hierosólima sagrada,
E do Jordão a areia tinha vista,
Que viu de Deus a carne em si lavada;
Que não tendo Gotfredo a quem resista,
Depois de ter Judeia sojugada,
Muitos, que nestas guerras o ajudaram,
Para seus senhorios se tornaram;

28

"Quando chegado ao fim de sua idade,
O forte e famoso Úngaro estremado,
Forçado da fatal necessidade,
O espírito deu a quem lhe tinha dado,
Ficava o filho em tenra mocidade,
Em quem o pai deixava seu traslado,
Que do mundo os mais fortes igualava;
Que de tal pai tal filho se esperava.

29

"Mas o velho rumor, não sei se errado,
Que em tanta antiguidade não há certeza,
Conta que a mãe, tomando todo o estado,
Do segundo himeneu não se despreza.
O filho órfão deixava deserdado,
Dizendo que nas terras a grandeza
Do senhorio todo só sua era,
Porque, para casar, seu pai lhes dera.

30

"Mas o Príncipe Afonso, que desta arte
Se chamava, do avô tomando o nome,
Vendo-se em suas terras não ter parte,
Que a mãe, com seu marido, as manda e come,
Fervendo-lhe no peito o duro Marte,
Imagina consigo como as tome.
Revolvidas as causas no conceito,
Ao propósito firme segue o efeito.

31

"De Guimarães o campo se tingia
Co'o sangue próprio da intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
Com ele posta em campo já se via;
E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior.

32

"Ó Progne crua! ó mágica Medeia!
Se em vossos próprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhai que inda Teresa peca mais:
Incontinência má, cobiça feia,
São as causas deste erro principais:
Cila, por uma, mata o velho pai,
Esta, por ambas, contra o filho vai.

33

"Mas já o Príncipe claro o vencimento
Do padrasto e da iníqua mãe levava;
Já lhe obedece a terra num momento,
Que primeiro contra ele pelejava.
Porém, vencido de ira o entendimento,
A mãe em ferros ásperos atava;
Mas de Deus foi vingada em tempo breve:
Tanta veneração aos pais se deve!

34

"Eis se ajunta o soberbo Castelhano,
Para vingar a injúria de Teresa,
Contra o tão raro em gente Lusitano,
A quem nenhum trabalho agrava ou pesa.
Em batalha cruel o peito humano,
Ajudado da angélica defesa,
Não só contra tal fúria se sustenta,
Mas o inimigo aspérrimo afugenta.

35

"Não passa muito tempo, quando o forte
Príncipe em Guimarães está cercado
De infinito poder; que desta sorte
Foi refazer-se o inimigo magoado;
Mas, com se oferecer à dura morte
O fiel Egas amo, foi livrado;
Que de outra arte pudera ser perdido,
Segundo estava mal apercebido.

36

"lulas o leal vassalo, conhecendo
Que seu senhor não tinha resistência,
Se vai ao Castelhano, prometendo
Que ele faria dar-lhe obediência.
Levanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na promessa e consciência
De Egas Moniz; mas não consente o peito
Do moço ilustre a outrem ser sujeito.

37

"Chegado tinha o prazo prometido,
Em que o Rei Castelhano já aguardava
Que o Príncipe, a seu mando sometido,
Lhe desse a obediência que esperava.
Vendo Egas que ficava fementido,
O que dele Castela não cuidava,
Determina de dar a doce vida
A troco da palavra mal cumprida.

38

"E com seus filhos e mulher se parte
A alevantar com eles a fiança,
Descalços e despidos, de tal arte,
Que mais move a piedade que a vingança.
- "Se pretendes, Rei alto, de vingar-te
De minha temerária confiança,
Dizia, eis aqui venho oferecido
A te pagar, coa vida, o prometido.

39

"Vês aqui trago as vidas inocentes
Dos filhos sem pecado e da consorte;
Se a peitos generosos e excelentes,
Dos fracos satisfaz a fera morte.
Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:
Nelas sós exprimenta toda a sorte
De tormentos, de mortes, pelo estilo
De Cínis e do touro de Perilo"! —

40

"Qual diante do algoz o condenado,
Que já na vida a morte tem bebido,
Põe no cepo a garganta, e já entregado
Espera pelo golpe tão temido:
Tal diante do Príncipe indinado,
Egas estava a tudo oferecido.
Mas o Rei, vendo a estranha lealdade,
Mais pôde, enfim, que a ira a piedade.

41

" Ó grão fidelidade Portuguesa,
De vassalo, que a tanto se obrigava!
Que mais o Persa fez naquela empresa,
Onde rosto e narizes se cortava?
Do que ao grande Dario tanto pesa,
Que mil vezes dizendo suspirava,
Que mais o seu Zopiro são prezara,
Que vinte Babilónias que tomara.

42

Mas já o Príncipe Afonso aparelhava
O Lusitano exército ditoso,
Contra o Mouro que as terras habitava
D'além do claro Tejo deleitoso;
Já no campo de Ourique se assentava
O arraial soberbo e belicoso,
Defronte do inimigo Sarraceno,
Posto que em força e gente tão pequeno.

43

"Em nenhuma outra cousa confiado,
Senão no sumo Deus, que o Céu regia,
Que tão pouco era o povo batizado,
Que para um só cem Mouros haveria.
Julga qualquer juízo sossegado
Por mais temeridade que ousadia,
Cometer um tamanho ajuntamento,
Que para um cavaleiro houvesse cento.

44

"Cinco Reis Mouros são os inimigos,
Dos quais o principal Ismar se chama;
Todos exprimentados nos perigos
Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.
Seguem guerreiras damas seus amigos,
Imitando a formosa e forte Dama,
De quem tanto os Troianos se ajudaram,
E as que o Termodonte já gostaram.

45

"A matutina luz serena e fria,
As estrelas do Pólo já apartava,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a Afonso, o animava.
Ele, adorando quem lhe aparecia,
Na Fé todo inflamado assim gritava:
- "Aos infiéis, Senhor, aos infiéis,
E não a mim, que creio o que podeis!"

46

"Com tal milagre os ânimos da gente
Portuguesa inflamados, levantavam
Por seu Rei natural este excelente
Príncipe, que do peito tanto amavam;
E diante do exército potente
Dos imigos, gritando o céu tocavam,
Dizendo em alta voz: — "Real, real,
Por Afonso alto Rei de Portugal."

47

"Qual co'os gritos e vozes incitado,
Pela montanha o rábido Moloso,
Contra o touro remete, que fiado
Na força está do corno temeroso:
Ora pega na orelha, ora no lado,
Latindo mais ligeiro que forçoso,
Até que enfim, rompendo-lhe a garganta,
Do bravo a força horrenda se quebranta:

48

"Tal do Rei novo o estâmago acendido
Por Deus e pelo povo juntamente,
O Bárbaro comete apercebido,
Co'o animoso exército rompente.
Levantam nisto os perros o alarido
Dos gritos, tocam a arma, ferve a gente,
As lanças e arcos tomam, tubas soam,
Instrumentos de guerra tudo atroam.

49

"Bem como quando a flama, que ateada
Foi nos áridos campos (assoprando
O sibilante Bóreas) animada
Co'o vento, o seco mato vai queimando;
A pastoral companha, que deitada
Co'o doce sono estava, despertando
Ao estridor do fogo que se ateia,
Recolhe o fato, e foge para a aldeia:

50

"Desta arte o Mouro atónito e torvado,
Toma sem tento as armas mui depressa;
Não foge; mas espera confiado,
E o ginete belígero arremessa.
O Português o encontra denodado,
Pelos peitos as lanças lhe atravessa:
Uns caem meios mortos, e outros vão
A ajuda convocando do Alcorão.

51

"Ali se vêem encontros temerosos,
Para se desfazer uma alta serra,
E os animais correndo furiosos
Que Neptuno amostrou ferindo a terra.
Golpes se dão medonhos e forçosos;
Por toda a parte andava acesa a guerra:
Mas o de Luso arnês, couraça e malha
Rompe, corta, desfaz, abola e talha.

52

"Cabeças pelo campo vão saltando
Braços, pernas, sem dono e sem sentido;
E doutros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando;
Correm rios de sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde,
Tornado carmesi de branco e verde.

53

"Já fica vencedor o Lusitano,
Recolhendo os troféus e presa rica;
Desbaratado e roto o Mauro Hispano,
Três dias o grão Rei no campo fiei.
Aqui pinta no branco escudo ufano,
Que agora esta vitória certifica,
Cinco escudos azuis esclarecidos,
Em sinal destes cinco Reis vencidos,

54

"E nestes cinco escudos pinta os trinta
Dinheiros por que Deus fora vendido,
Escrevendo a memória em vária tinta,
Daquele de quem foi favorecido.
Em cada uni dos cinco, cinco pinta,
Porque assim fica o número cumprido,
Contando duas vezes o do meio,
Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio.

55

"Passado já algum tempo que passada
Era esta grão vitória, o Rei subido
A tomar vai Leiria, que tomada
Fora, mui pouco havia, do vencido.
Com esta a forte Arronches sojugada
Foi juntamente, e o sempre enobrecido
Scalabicastro, cujo campo ameno,
Tu, claro Tejo, regas tão sereno.

56

"A estas nobres vilas sometidas,
Ajunta também Mafra, em pouco espaço,
E nas serras da Lua conhecidas,
Sojuga a fria Sintra o duro braço;
Sintra, onde as Naiades, escondidas
Nas fontes, vão fugindo ao doce laço,
Onde Amor as enreda brandamente,
Nas águas acendendo fogo ardente.

57

"E tu, nobre Lisboa, que no Mundo
Facilmente das outras és princesa,
Que edificada foste do facundo,
Por cujo engano foi Dardânia acesa;
Tu, a quem obedece o mar profundo,
Obedeceste à força Portuguesa,
Ajudada também da forte armada,
Que das Boreais partes foi mandada.

58

"Lá do Germânico Albis, e do Rene,
E da fria Bretanha conduzidos,
A destruir o povo Sarraceno,
Muitos com tensão santa eram partidos.
Entrando a boca já do Tejo ameno,
Co'o arraial do grande Afonso unidos,
Cuja alta fama então subia aos Céus,
Foi posto cerco tos muros Ulisseus.

59

"Cinco vezes a Lua se escondera,
E outras tantas mostrara cheio o rosto,
Quando a cidade entrada se rendera
Ao duro cerco, que lhe estava posto.
Foi a batalha tão sanguina e fera,
Quanto obrigava o firme pressuposto
De vencedores ásperos e ousados,
E de vencidos já desesperados.

60

"Desta arte enfim tomada se rendeu
Aquela que, nos tempos já passados,
A grande força nunca obedeceu
Dos frios povos Cíticos ousados,
Cujo poder a tanto se estendeu
Que o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;
E enfim co'o Bétis tanto alguns puderam
Que à terra de Vandália nome deram.

61

"Que cidade tão forte por ventura
Haverá que resista, se Lisboa
Não pôde resistir à força dura
Da gente, cuja fama tanto voa?
Já lhe obedece toda a Estremadura,
Óbidos, Alenquer, por onde soa
O tom das frescas águas, entre as pedras,
Que murmurando lava, e Torres Vedras.

62

"E vós também, ó terras Transtaganas,
Afamadas co'o dom da flava Ceres,
Obedeceis às forças mais que humanas,
Entregando-lhe os muros e os poderes.
E tu, lavrador Mouro, que te enganas,
Se sustentar a fértil terra queres;
Que Elvas, e Moura, e Serpa conhecidas,
E Alcácere-do-Sal estão rendidas.

63

"Eis a nobre Cidade, certo assento
Do rebelde Sertório antigamente,
Onde ora as águas nítidas de argento
Vem sustentar de longo a terra e a gente,
Pelos arcos reais, que cento e cento
Nos ares se alevantam nobremente,
Obedeceu por meio e ousadia
De Giraldo, que medos não temia.

64

"Já na cidade Beja vai tomar
Vingança de Trancoso destruída
Afonso, que não sabe sossegar,
Por estender coa fama a curta vida.
Não se lhe pode muito sustentar
A cidade; mas sendo já rendida,
Em toda a cousa viva a gente irada
Provando os fios vai da dura espada.

65

"Com estas sojugada foi Palmela,
E a piscosa Cezimbra, e juntamente,
Sendo ajudado mais de sua estrela,
Desbarata um exército potente:
Sentiu-o a vila, e viu-o a serra dela,
Que a socorrê-la vinha diligente
Pela fralda da serra, descuidado
Do temeroso encontro inopinado.

66

"O Rei de Badajoz era alto Mouro,
Com quatro mil cavalos furiosos,
Inúmeros peões, d'armas e de ouro
Guarnecidos, guerreiros e lustrosos.
Mas, qual no mês de Maio o bravo touro,
Co'os ciúmes da vaca, arreceosos,
Sentindo gente o bruto e cego amante
Salteia o descuidado caminhante:

67

"Desta arte Afonso súbito mostrado
Na gente dá, que passa bem segura,
Fere, mata, derriba denodado;
Foge o Rei Mouro, e só da vida cura.
Dum pânico terror todo assombrado,
Só de segui-lo o exército procura;
Sendo estes que fizeram tanto abalo
Não mais que só sessenta de cavalo.

68

"Logo segue a vitória sem tardança
O grão Rei incansábil, ajuntando
Gentes de todo o Reino, cuja usança
Era andar sempre terras conquistando.
Cercar vai Badajoz, e logo alcança
O fim de seu desejo, pelejando
Com tanto esforço, e arte, e valentia,
Que a fez fazer às outras companhia.

69

"Mas o alto Deus, que para longe guarda
O castigo daquele que o merece,
Ou, para que se emende, às vezes tarda,
Ou por segredos que homem não conhece,
Se até que sempre o forte Rei resguarda
Dos perigos a que ele se oferece;
Agora lhe não deixa ter defesa
Da maldição da mãe que estava presa.

70

"Que estando na cidade, que cercara,
Cercado nela foi dos Lioneses,
Porque a conquista dela lhe tomara,
De Lião sendo, e não dos Portugueses.
A pertinácia aqui lhe custa cara,
Assim como acontece muitas vezes,
Que em ferros quebra as pernas, indo aceso
A batalha, onde foi vencido e preso.

71

"Ó famoso Pompeio, não te pene
De teus feitos ilustres a ruína,
Nem ver que a justa Némesis ordene
Ter teu sogro de ti vitória dina,
Posto que o frio Fásis, ou Siene,
Que para nenhum cabo a sombra inclina,
O Bootes gelado e a linha ardente,
Temessem o teu nome geralmente.

72

"Posto que a rica Arábia e que os ferozes
Eníocos e Colcos, cuja fama
O Véu dourado estende, e os Capadoces,
E Judeia, que um Deus adora e ama,
E que os moles Sofenos, e os atroces
Cilícios, com a Arménia, que derrama
As águas dos dous rios, cuja fonte
Está noutro mais alto e santo monte;

73

"E posto enfim que desde o mar de Atlante
Até o Cítico Tauro monte erguido,
Já vencedor te vissem, não te espanto
Se o campo Emátio só te viu vencido,
Porque Afonso verás, soberbo e ovante,
Tudo render-se ser depois rendido.
Assim o quis o conselho alto e celeste,
Que vença o sogro a ti, e o genro a este.

74

"Tornado o Rei sublime finalmente,
Do divino Juízo castigado,
Depois que em Santarém soberbamente
Em vão dos Sarracenos foi cercado,
E depois que do mártire Vicente
O santíssimo corpo venerado
Do Sacro Promontório conhecido
A cidade Ulisseia foi trazido;

75

"Porque levasse avante seu desejo,
Ao forte filho manda o lasso velho
Que às terras se passasse d'Alentejo,
Com gente e co'o belígero aparelho.
Sancho, d'esforço o d'ânimo sobejo,
Avante passa, e faz correr vermelho
O rio que Sevilha vai regando,
Co'o sangue Mauro, bárbaro e nefando.

76

"E com esta vitória cobiçoso,
Já não descansa o moço até que veja
Outro estrago como este, temeroso,
No Bárbaro que tem cercado Beja.
Não tarda muito o Príncipe ditoso
Sem ver o fim daquilo que deseja.
Assim estragado o Mouro, na vingança
De tantas perdas põe sua esperança.

77

"Já se ajuntam do monte a quem Medusa
O corpo fez perder, que teve o Céu;
Já vem do promontório de Ampelusa
E do Tinge, que assento foi de Anteu.
O morador de Abila não se escusa,
Que também com suas armas se moveu,
Ao som da Mauritana e ronca tuba,
Todo o Reino que foi do nobre Juba.

78

"Entrava com toda esta companhia
O Miralmomini em Portugal;
Treze Reis mouros leva de valia,
Entre os quais tem o ceptro imperial;
E assim fazendo quanto mal podia,
O que em partes podia fazer mal,
Dom Sancho vai cercar em Santarém;
Porém não lhe sucede muito bem.

79

"Dá-lhe combates ásperos, fazendo
Ardis de guerra mil o Mouro iroso;
Não lhe aproveita já trabuco horrendo,
Mina secreta, aríete forçoso:
Porque o filho de Afonso não perdendo
Nada do esforço e acordo generoso,
Tudo provê com ânimo e prudência;
Que em toda a parte há esforço e resistência.

80

"Mas o velho, a quem tinham já obrigado
Os trabalhosos anos ao sossego,
Estando na cidade, cujo prado
Enverdecem as águas do Mondego,
Sabendo como o filho está cercado
Em Santarém do Mauro povo cego,
Se parte diligente da cidade;
Que não perde a presteza coa idade.

81

"E coa famosa gente à guerra usada
Vai socorrer o filho; e assim ajuntados,
A Portuguesa fúria costumada
Em breve os Mouros tem desbaratados.
A campina, que toda está coalhada
De marlotas, capuzes variados,
De cavalos, jaezes, presa rica,
De seus senhores mortos cheia fica.

82

"Logo todo o restante se partiu
De Lusitânia, postos em fugida;
O Miralmomini só não fugiu,
Porque, antes de fugir, lhe foge a vida.
A quem lhe esta vitória permitiu
Dão louvores e graças sem medida:
Que em casos tão estranhos claramente
Mais peleja o favor de Deus que a gente.

83

"De tamanhas vitórias triunfava
O velho Afonso , Príncipe subido,
Quando, quem tudo enfim vencendo andava,
Da larga e muita idade foi vencido.
A pálida doença lhe tocava
Com fria mão o corpo enfraquecido;
E pagaram seus anos deste jeito
A triste Libitina seu direito.

84

"Os altos promontórios o choraram,
E dos rios as águas saudosas
Os semeados campos alagaram
Com lágrimas correndo piedosas.
Mas tanto pelo mundo se alargaram
Com faina suas obras valerosas,
Que sempre no seu Reino chamarão
"Afonso, Afonso" os ecos, mas em vão.

85

"Sancho, forte mancebo, que ficara
Imitando seu pai na valentia,
E que em sua vida já se exprimentara,
Quando o Bétis de sangue se tingia,
E o bárbaro poder desbaratara
Do Ismaelita Rei de Andaluzia;
E mais quando os que Beja em vão cercaram,
Os golpes de seu braço em si provaram;

86

"Depois que foi por Rei alevantado,
Havendo poucos anos que reinava,
A cidade de Silves tem cercado,
Cujos campos o bárbaro lavrava.
Foi das valentes gentes ajudado
Da Germânica armada que passava,
De armas fortes e gente apercebida,
A recobrar Judeia já perdida.

87

"Passavam a ajudar na santa empresa
O roxo Federico, que moveu
O poderoso exército em defesa
Da cidade onde Cristo padeceu,
Quando Guido, coa gente em sede acesa,
Ao grande Saladino se rendeu,
No lugar onde aos Mouros sobejavam
As águas que os de Guido desejavam.

88

"Mas a formosa armada, que viera
Por contraste de vento àquela parte,
Sancho quis ajudar na guerra fera,
Já que em serviço vai do santo Marte.
Assim como a seu pai acontecera
Quando tomou Lisboa, da mesma arte
Do Germano ajudado Silves toma,
E o bravo morador destrue e doma.

89

"E se tantos troféus do Mahometa
Alevantando vai, também do forte
Lionês não consente estar quieta
A terra, usada aos casos de Mavorte,
Até que na cerviz seu jugo meta
Da soberba Tui, que a mesma sorte
Viu ter a muitas vilas suas vizinhas,
Que, por armas, tu, Sancho, humildes tinhas.

90

"Mas entre tantas palmas salteado
Da temerosa morte, fica herdeiro
Um filho seu, de todos estimado,
Que foi segundo Afonso, e Rei terceiro.
No tempo deste, aos Mouros foi tomado
Alcácere-do-Sal por derradeiro;
Porque dantes os Mouros o tomaram,
Mas agora estruídos o pagaram.

91

"Morto depois Afonso, lhe sucede
Sancho segundo, manso e descuidado,
Que tanto em seus descuidos se desmede,
Que de outrem, quem mandava, era mandado.
De governar o Reino, que outro pede,
Por causa dos privados foi privado,
Porque, como por eles se regia,
Em todos os seus vícios consentia.

92

"Não era Sancho, não, tão desonesto
Como Nero, que um moço recebia
Por mulher, e depois horrendo incesto
Com a mãe Agripina cometia;
Nem tão cruel às gentes e molesto,
Que a cidade queimasse onde vivia,
Nem tão mau como foi Heliogabalo,
Nem como o mole Rei Sardanapalo.

93

"Nem era o povo seu tiranizado,
Como Sicília foi de seus tiranos;
Nem tinha como Fálaris achado
Gênero de tormentos inumanos;
Mas o Reino, de altivo e costumado
A senhores em tudo soberanos,
A Rei não obedece, nem consente,
Que não for mais que todos excelente.

94

"Por esta causa o Reino governou
O Conde Bolonhês, depois alçado
Por Rei, quando da vida se apartou
Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado.
Este, que Afonso o bravo, se chamou,
Depois de ter o Reino segurado,
Em dilatá-lo cuida, que em terreno
Não cabe o altivo peito, tão pequeno.

95

"Da terra dos Algarves, que lhe fora
Em casamento dada, grande parte
Recupera co'o braço, e deita fora
O Mouro, mal querido já de Marte.
Este de todo fez livre e senhora
Lusitânia, com força e bélica arte;
E acabou de oprimir a nação forte,
Na terra que aos de Luso coube em sorte.

96

"Eis depois vem Dinis, que bem parece
Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,
Com quem a fama grande se escurece
Da liberalidade Alexandrina.
Com este o Reino próspero florece
(Alcançada já a paz áurea divina)
Em constituições, leis e costumes,
Na terra já tranquila claros lumes.

97

"Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva;
E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar do Monde-o a fértil erva.
Quanto pode de Atenas desejar-se,
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.
Aqui as capelas dá tecidas de ouro,
Do bácaro e do sempre verde louro.

98

"Nobres vilas de novo edificou
Fortalezas, castelos mui seguros,
E quase o Reino todo reformou
Com edifícios grandes, e altos muros.
Mas depois que a dura Átropos cortou
O fio de seus dias já maduros,
Ficou-lhe o filho pouco obediente,
Quarto Afonso, mas forte e excelente.

99

"Este sempre as soberbas Castelhanas
Co'o peito desprezou firme e sereno,
Porque não é das forças Lusitanas,
Temer poder maior, por mais pequeno.
Mas porém, quando as gentes Mauritanas,
A possuir o Hespérico terreno
Entraram pelas terras de Castela,
Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.

100

"Nunca com Semirâmis gente tanta
Veio os campos idáspicos enchendo,
Nem Atila, que Itália toda espanta,
Chamando-se de Deus açoute horrendo,
Gótica gente trouxe tanta, quanta
Do Sarraceno bárbaro estupendo,
Co'o poder excessivo de Granada,
Foi nos campos Tartésios ajuntada.

101

"E vendo o Rei sublime Castelhano
A força inexpugnábil, grande e forte,
Temendo mais o fim do povo hispano,
Já perdido uma vez, que a própria morte,
Pedindo ajuda ao forte Lusitano,
Lhe mandava a caríssima consorte,
Mulher de quem a manda, e filha amada
Daquele a cujo Reino foi mandada.

102

"Entrava a formosíssima Maria
Pelos paternais paços sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E seus olhos em lágrimas banhados;
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros espalhados:
Diante do pai ledo, que a agasalha,
Estas palavras tais, chorando, espalha:

103

- "Quantos povos a terra produziu
De África toda, gente fera e estranha,
O grão Rei de Marrocos conduziu
Para vir possuir a nobre Espanha:
Poder tamanho junto não se viu,
Depois que o salso mar a terra banha.
Trazem ferocidade, e furor tanto,
Que a vivos medo, e a mortos faz espanto.

104

- "Aquele que me deste por marido,
Por defender sua terra amedrontada,
Co'o pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da Maura espada;
E se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás dele e do Reino ser privada,
Viúva e triste, e posta em vida escura,
Sem marido, sem Reino, e sem ventura.

105

"Portanto, ó Rei, de quem com puro medo
O corrente Muluca se congela,
Rompe toda a tardança, acude cedo
A miseranda gente de Castela.
Se esse gesto, que mostras claro e ledo,
De pai o verdadeiro amor assela,
Acude e corre, pai, que se não corres,
Pode ser que não aches quem socorres." —

106

"Não de outra sorte a tímida Maria
Falando está, que a triste Vénus, quando
A Júpiter, seu pai, favor pedia
Para Eneias, seu filho, navegando;
Que a tanta piedade o comovia
Que, caído das mãos o raio infando,
Tudo o clemente Padre lhe concede,
Pesando-lhe do pouco que lhe pede.

107

"Mas já co'os esquadrões da gente armada
Os Eborenses campos vão coalhados:
Lustra co'o Sol o arnês, a lança, a espada;
Vão rinchando os cavalos jaezados.
A canora trombeta embandeirada,
Os corações à paz acostumados
Vai às fulgentes armas incitando,
Pelas concavidades retumbando.

108

"Entre todos no meio se sublima,
Das insígnias Reais acompanhado,
O valeroso Afonso, que por cima
De todos leva o colo alevantado;
E somente co'o gesto esforça e anima
A qualquer coração amedrontado.
Assim entra nas terras de Castela
Com a filha gentil, Rainha dela.

109

"Juntos os dous Afonsos finalmente
Nos campos de Tarifa estão defronte
Da grande multidão da cega gente,
Para quem são pequenos campo e monte.
Não há peito tão alto e tão potente,
Que de desconfiança não se afronte,
Enquanto não conheça e claro veja
Que co'o braço dos seus Cristo peleja.

110

"Estão de Agar os netos quase rindo
Do poder dos Cristãos fraco e pequeno,
As terras como suas repartindo
Antemão, entre o exército Agareno,
Que com título falso possuindo
Está o famoso nome Sarraceno.
Assim também com falsa conta e nua,
À nobre terra alheia chamam sua.

111

"Qual o membrudo e bárbaro Gigante,
Do rei Saul, com causa, tão temido,
Vendo o pastor inerme estar diante,
Só de pedras e esforço apercebido,
Com palavras soberbas o arrogante
Despreza o fraco moço mal vestido,
Que, rodeando a funda, o desengana
Quanto mais pode a Fé que a força humana:

112

"Desta arte o Mouro pérfido despreza
O poder dos Cristãos, e não entende
Que está ajudado da Alta Fortaleza,
A quem o inferno horrífico se rende.
Co ela o Castelhano, e com destreza
De Marrocos o Rei comete e ofende.
O Português, que tudo estima em nada,
Se faz temer ao Reino de Granada.

113

"Eis as lanças e espadas retiniam
Por cima dos arneses: bravo estrago!
Chamam (segundo as leis que ali seguiam)
Uns Mafamede, e os outros Santiago.
Os feridos com grita o Céu feriam,
Fazendo de seu sangue bruto lago,
Onde outros meios mortos se afogavam,
Quando do ferro as vidas escapavam.

114

"Com esforço tamanho estrui e mata
O Luso ao Granadil, que, em pouco espaço,
Totalmente o poder lhe desbarata,
Sem lhe valer defesa ou peito de aço.
De alcançar tal vitória tão barata
Inda não bem contente o forte braço,
Vai ajudar ao bravo Castelhano,
Que pelejando está co'o Mauritano.

115

"Já se ia o Sol ardente recolhendo
Para a casa de Tethys, e inclinado
Para o Ponente, o Véspero trazendo,
Estava o claro dia memorado,
Quando o poder do Mauro grande e horrendo
Foi pelos fortes Reis desbaratado,
Com tanta mortandade, que a memória
Nunca no mundo viu tão grã vitória.

116

"Não matou a quarta parte o forte Mário
Dos que morreram neste vencimento,
Quando as águas co'o sangue do adversário
Fez beber ao exército sedento;
Nem o Peno asperíssimo contrário
Do Romano poder, de nascimento,
Quando tantos matou da ilustro Roma,
Que alqueires três de anéis dos mortos toma.

117

"E se tu tantas almas só pudeste
Mandar ao Reino escuro de Cocito,
Quando a santa Cidade desfizeste
Do povo pertinaz no antigo rito:
Permissão e vingança foi celeste,
E não força de braço, ó nobre Tito,
Que assim dos Vates foi profetizado,
E depois por Jesu certificado.

118

"Passada esta tão próspera vitória,
Tornando Afonso à Lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste, e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de ser morta foi Rainha.

119

"Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

120

"Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

121

"Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam:
De noite em doces sonhos, que mentiam,
De dia em pensamentos, que voavam.
E quanto enfim cuidava, e quanto via,
Eram tudo memórias de alegria.

122

"De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo enfim, tu, puro amor, despreza,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo, e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,

123

"Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co'o sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra uma fraca dama delicada?

124

"Traziam-na os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade:
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela com tristes o piedosas vozes,
Saídas só da mágoa, e saudade
Do seu Príncipe, e filhos que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,

125

"Para o Céu cristalino alevantando
Com lágrimas os olhos piedosos,
Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos;
E depois nos meninos atentando,
Que tão queridos tinha, e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assim dizia:

126

- "Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas têm o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento,
Como coa mãe de Nino já mostraram,
E colos irmãos que Roma edificaram;

127

- "Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar uma donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la)
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

128

- "E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vicia com clemência
A quem para perdê-la não fez erro.
Mas se to assim merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia f ria, ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.

129

"Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei:
Ali com o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem morro, criarei
Estas relíquias suas que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste." -

130

— Morte de Inês de Castro
"Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo, e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra uma dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais, e cavaleiros?

131

"Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co'o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:

132

"Tais contra Inês os brutos matadores
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez Rainha;
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

133

"Bem puderas, ó Sol, da vista destes
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia.
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetisses!

134

"Assim como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor, coa doce vida.

135

"As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome amores.

136

"Não correu muito tempo que a vingança
Não visse Pedro das mortais feridas,
Que, em tomando do Reino a governança,
A tomou dos fugidos homicidas.
Do outro Pedro cruíssimo os alcança,
Que ambos, imigos das humanas vidas,
O concerto fizeram, duro e injusto,
Que com Lépido e António fez Augusto.

137

"Este, castigador foi rigoroso
De latrocínios, mortes e adultérios:
Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,
Eram os seus mais certos refrigérios.
As cidades guardando justiçoso
De todos os soberbos vitupérios,
Mais ladrões castigando à morte deu,
Que o vagabundo Aleides ou Teseu.

138

"Do justo e duro Pedro nasce o brando,
(Vede da natureza o desconcerto!)
Remisso, e sem cuidado algum, Fernando,
Que todo o Reino pôs em muito aperto:
Que, vindo o Castelhano devastando
As terras sem defesa, esteve perto
De destruir-se o Reino totalmente;
Que um fraco Rei f az fraca a forte gente.

139

"Ou foi castigo claro do pecado
De tirar Lianor a seu marido,
E casar-se com ela, de enlevado
Num falso parecer mal entendido;
Ou foi que o coração sujeito e dado
Ao vício vil, de quem se viu rendido,
Mole se fez e fraco; e bem parece,
Que um baixo amor os fortes enfraquece.

140

"Do pecado tiveram sempre a pena
Muitos, que Deus o quis, e permitiu:
Os que foram roubar a bela Helena,
E com Apio também Tarquilio o viu.
Pois por quem David Santo se condena?
Ou quem o Tribo ilustre destruiu
De Benjamim?Bem claro no-lo ensina
Por Sara Faraó, Siquém por Dina.

141

"E pois se os peitos fortes enfraquece
Um inconcesso amor desatinado,
Bem no filho de Alcmena se parece,
Quando em Ônfale andava transformado.
De Marco António a faina se escurece
Com ser tanto a Cleopatra afeiçoado.
Tu também, Peno próspero, o sentiste
Depois que uma moça vil na Apúlia viste.

142

"Mas quem pode livrar-se por ventura
Dos laços que Amor arma brandamente
Entre as rosas e a neve humana pura,
O ouro e o alabastro transparente?
Quem de uma peregrina formosura,
De um vulto de Medusa propriamente,
Que o coração converte, que tem preso,
Em pedra não, mas em desejo aceso?

143

"Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,
Uma suave e angélica excelência,
Que em si está sempre as almas transformando,
Que tivesse contra ela resistência?
Desculpado por certo está Fernando,
Para quem tem de amor experiência;
Mas antes, tendo livre a fantasia,
Por muito mais culpado o julgaria.

Leitura para a semana.


Na primeira metade do século XX, o mundo foi flagelado por guerras sucessivas, que causaram milhões de mortos, destruição e sofrimento. Houve também quem prosperasse com o esforço bélico, como os volframistas. Portugal foi um dos principais exportadores de volfrâmio, durante a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial.
O enriquecimento súbito dos volframistas e a sua queda na penúria do pós-guerra são motivo para uma tese de doutoramento do investigador João de Deus. Mergulhado numa conturbada vida amorosa, investiga o passado de Petrónio Chibante, o Rei do Volfrâmio, explorador da mina Paraíso, em Vilar das Almas. O passado, convocado de forma estranha pela alma de Serafina Amásio, antes de abandonar o corpo, cruza-se com o presente, revivendo amores e desamores de cada época, no lugar recôndito de Vilar e por esse mundo fora.

O Rei do Volfrâmio é a saga de um país e das suas almas, vivendo de um passado faustoso e iluminado, sem canalizar forças para o futuro. É uma reflexão sobre a diáspora e as gerações de novos párias.

É também uma ode ao amor, nas suas mais diversas e estranhas formas. É ainda uma elegia aos que das fraquezas fizeram forças, em nome da razão.