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domingo, 6 de dezembro de 2009

Ontem à Tarde um Homem das Cidades .




Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os
outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber faze-lo sem pensar nisso.
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXII"
Heterónimo de Fernando Pessoa

4 comentários:

Anónimo disse...

O Guardador de Rebanhos guarda pensamentos, que são sensações. O símbolo do rebanho é a representação do limite da existência humana, onde reside a liberdade. O que possui rastros do religioso torna-se demônico. O símbolo rompe a angústia da separação e busca na dimensão do divino, o divino que se rompera. O discurso demônico se eleva e “liberta” o divino.

Gostou da analise?
Bjs.

Unknown disse...

Brilhante.

MENSAGENS AO VENTO disse...

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É lindo! Sou um pouco suspeita para comentar Fernando Pessoa e seus heterônimos, pois, adorei todos os textos que já li...


Obrigada, pela ótima leitura!

Beijos de luz!


Zélia (Mundo Azul)

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angela disse...

Bonito poema sobre a existencia, o existir somente sem espectativas ou sonhos.
lindo
beijos