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quarta-feira, 8 de julho de 2009

Acaricia-me.

Postal.






Como de costume, colocou os dois pratos sobre a mesa. Não havia sorriso, não havia fome. Enquanto a comida esfriava, a tempestade fazia barulho ao bater no teto. Vez ou outra se ouvia as rajadas do trovão, ainda que distantes. A mão delicada de Madalena aproximou-se lentamente da janela, como um arrepio que sobe pela espinha. Aquela janela velha de madeira, azulada como quisera, se prendia pela tranca, mesmo estando contra o vento que vinha do oceano. Tivera medo do que estava lá fora, diante dela. Mas o rosto também chegou mais perto. Quem estava longe não veria os imensos olhos negros observarem pela fresta do vitral o lado de fora. Fechou abruptamente, com todos os sonhos que aquela mulher poderia ter.

O aceno, o último olhar, se transformava naquela luz que aparecia no mar. Subindo e descendo, subindo e descendo, subindo assim, descendo de lá. As ondas aumentavam, e a luz ao longo do horizonte, ia se distanciando. Um uivo de vento passava pela casa pequena, silenciosa. Se prestasse atenção, fazia-a tremer. A mão pequena fechava-se como se não pudesse mais agir. A flecha fora atirada. A palavra dita. Chegara sorrindo, queimado de sol.

— Descobri meu grande sonho.

Descobrir os sonhos pode custar caro.

— Quero conhecer o mundo.

Conhecer o mundo era ter ele todo para si.

— Você não pode conhecer o mundo.

— Posso. — Olhou para o mar.

— Então me leva.

— É perigoso.

— Então não vá.

Perde-se a luz de vista, mas logo surge mais pequenino, quase caindo no céu. Pedido fora negado.

— Meu sonho é conhecer o mundo — repetia.

A vida continuava, debaixo de sol ou sob a chuva fria que molhava rostos, com a mesma intensidade que a lágrima lhe escorria. E se perguntou, porque está arrumando suas coisas, por que seu barco está aí na frente. Entendera, mas não quis acreditar. Era o mundo que estava pronto para receber. O céu começou a fechar.

— Quero conhecer o mundo também — pegou-o pelo braço.

Beijou-lhe na despedida, assim como beijou a barriga que traria alguém para conhecer o novo mundo. Acariciou ternamente. Filho do adeus. A luz se apagou lá longe. O mar ainda revolto, revirava vidas dentro e fora dele.

— Eu tenho um sonho.

Olhou-a com curiosidade.

— Meu sonho é conhecer o mundo.

Ele sorriu e subiu no barco. Ela correu, mas percebeu que um sonho era mais forte que ela.

— Então me faça uma promessa.

Ele concordou com a cabeça. Madalena pediu, queria conhecer as coisas mais bonitas do mundo.

— Por onde você passar, me mande um postal.

A tempestade teima em não parar. A comida ainda esfria na mesa. E ela nunca recebera nenhum postal.

(Caio Tozzi)

A dança.




Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo directamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

Se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Pablo Neruda

terça-feira, 7 de julho de 2009

Sono.


O sono é um bálsamo curador para todos os males .

A Cor da Tua Alma .




Enquanto eu te beijo, o seu rumor
nos dá a árvore, que se agita ao sol de ouro
que o sol lhe dá ao fugir, fugaz tesouro
da árvore que é a árvore de meu amor.

Não é fulgor, não é ardor, não é primor
o que me dá de ti o que te adoro,
com a luz que se afasta; é o ouro, o ouro,
é o ouro feito sombra: a tua cor.

A cor de tua alma; pois teus olhos
vão-se tornando nela, e à medida
que o sol troca por seus rubros seus ouros,
e tu te fazes pálida e fundida,
sai o ouro feito tu de teus dois olhos
que me são paz, fé, sol: a minha vida!

Juan Ramón Jiménez, in "Ríos que se Van"

A Razão é um Instrumento do Prazer !



Não existe objecto das nossas paixões, não importa quão vil ou despre­zível possa parecer, que deixemos de julgar como bom quando senti­mos prazer em possuí-lo. (...) Todas as coisas são merecedoras de amor ou aversão, seja em si mesmas, seja por meio de algo a que este­jam associadas; e, quando somos movidos por alguma paixão, nós rapidamente descobrimos no objecto o bem ou o mal que a alimenta. (... ) Isso é suficiente para fazer a razão, comumente um instrumento do prazer, funcionar de modo a defender a causa desse prazer.

Nicolas Malebranche, in 'Procura da Verdade'

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Perdão.







Hoje sonhei que te perdoava. Estamos sentados frente a frente, desconfortáveis, com olhares perdidos. Eu podia sentir o teu desespero mudo no ar, tocar nele, moldá-lo à minha maneira, fazer dele capricho meu. Você fingia tomar seu café e olhar pela janela. O café estava tão quente que era quase uma presença humana. Éramos, então, quatro: eu, você, o café e seu desespero, percebi nisso metáfora indizível. Mesmo no fim, mesmo em sonhos, nunca sozinhos.

Sádica, eu folheava o jornal displicentemente e jogava os cadernos pelo chão, bagunçando tudo de propósito, como que para te irritar pela última vez. Você, numa coragem súbita, quebra o silêncio. Apenas ergo os olhos, fitando-te friamente e volto a uma notícia tediosa, no caderno de política. Falava alguma coisa sobre um tratado político no Sul da África... você fala, fala, fala. Fala coisas que eu não entendo, ou não lembro. Diz que se arrepende, pede desculpas, promete o céu e felicidade eterna. Continuo a ler, termino mais uma página e a jogo no chão, quase com desprezo. Sentindo o corpo inteiro estremecer, numa raiva contida, você se limita a olhar com o canto do olho a mais uma provocação e ignora, permitindo-se um resto de orgulho.

Ao perceber que ainda somos nós — você, puro orgulho, eu, pura implicância — dou um meio sorriso, sabendo que não tenho o direito de me sentir feliz. Você, de repente, percebe tudo e dá um sorriso largo, criança em dia de natal. Surpresa, apenas arregalo os olhos, você ri do meu espanto. Mais alto. Gargalha. Contagiada, vou sentindo minha boca se abrir, tímida, até se escancarar. Sentimos o corpo tremer e rimos, em uma crise guardada, sem explicação, sem motivo.

Passamos tempo incontável assim, a rir sem motivos e, de repente, paramos. Pela primeira vez, nos olhamos de verdade, com olhos de quem ri, inocentes e carinhosos. Finalmente, nós dois entendemos e, calados, aceitamos nosso destino: orgulho e implicância. Nos perdoamos.


Izabel Santa Cruz Fontes

Quem não Ama...




Se a flor namora a flor que lhe é vizinha,
Se uma palma com outra enlaça os ramos,
Se nos prados, com cândidos reclamos,
Namora uma avezinha outra avezinha.

Se o mundo o seu Autor quando o sustinha,
Nos eixos do poder, que acreditamos,
Na longa rotação que divisamos,
Viu que, para o suster, Amor convinha:

Se Amor é um dever que impresso existe
Em tudo que vegeta a redondeza,
Em que o governo universal consiste:

Quem se exime de amor e a Amor despreza?
Quem ataca esta Lei? Quem lhe resiste?
Quem não ama, desmente a Natureza.

Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'

Arco-íris.


A alma não teria arco-íris se os olhos não tivessem lágrimas .

domingo, 5 de julho de 2009

Da Leitura


Não leias para refutar ou contradizer, para aceitar ou aquiescer, para perorar ou discursar, mas para ponderar e considerar. Certos livros devem ser provados; outros engolidos; uns poucos mastigados e digeridos. Quer dizer: devemos ler certos livros apenas parceladamente; outros incuriosamente, e uns poucos da primeira à última página, com diligência e atenção. Alguns livros podem mesmo ser lidos por terceiros, que nos farão deles um apanhado, mas isso somente no caso de assuntos desimportantes, e de livros medíocres, pois livros resumidos são como água destilada: insípidos.
O ler faz um homem completo, o conferir destro, o escrever exacto. Bem por isso, se alguém escreve pouco, deve ter boa memória; se confere pouco, muita sagacidade; se lê pouco, muita manha para afectar saber o que não sabe.

Francis Bacon, in "Ensaios Civis e Morais"

Esforço.


Quem nunca caiu não tem bem a noção do esforço que é preciso para se manter de pé .

Ser eu !





"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."

Hilda Hilst

sábado, 4 de julho de 2009

Paixão.

Falar...


Se tudo o que disser-mos tiver conteúdo e verdade,seremos sempre ouvidos,não importa o que digamos...

De Esquecer




Demorei-me muito tempo ao pé de ti.
As portas fechadas por dentro, como se encerrasses
o amor e a lei. Demorei-me demais. Ao fim da tarde,
nesse mesmo dia que já morreu,
olhámo-nos devagar, mas distraídos. Diria até que anoiteceu.

Nunca falámos do amor que chega tarde.
Nem o interpelámos (como se já não pudesse
ter nome). Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.

Vês aqui alguma figura? Ninguém vê.
Repara no ponto preto que alastra na margem do quadro,
nas minhas lágrimas desse tempo.
Relê.

Luis Filipe Castro Mendes

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Humor !

Fui Sabendo de Mim .






Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

Margens.


Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem ...

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Destaques para o mês de Julho em Constância.


Os Ateliês de Verão, a Hora do Conto e a Mostra Bio-bibliográfica
constituem os destaques para o mês de Julho
A Biblioteca Municipal Alexandre O’Neill prossegue a sua estratégia de valorização do património bibliográfico e de ocupação de tempos livres e de lazer dos nossos utilizadores durante o período estival.

Para além das novidades literárias e audiovisuais e das actividades regulares de desenvolvimento da literacia dos seus utilizadores, às segundas-feiras, a partir das 14:00H, Os Ateliês de Verão, a Hora do Conto e a Mostra Bio-bibliográfica Conhece a Biblioteca e às quartas-feiras, a partir das 10.30 H a Hora do Conto, com O Livro da Avó de Luís Silva.

Continua a decorrer DVDteca à Sexta, na sala polivalente, a partir das 15:00H e em Julho as sessões terão o seguinte calendário: dia 3, A Casa Fantasma, dia 10, Minúsculos, dia 17, Macacos no Espaço, dia 24, Dia de Surf e dia 31, Madagáscar 2.

No Escritor do Mês, a mostra bio-bibliográfica pretende dar a conhecer a vida e obra de Alexandre Honrado. Nasceu em Lisboa, a 1 de Novembro de 1960 e muito jovem começou a escrever e a publicar textos em jornais, especialmente no Diário Popular, sendo o seu primeiro livro denominado Castelinhos no Ar. Mas, depressa, veio a ocupar lugar destacado numa nova geração de escritores portugueses de literatura para crianças e para jovens.

Tendo como principal objectivo promover o livro e a leitura, durante as quartas-feiras deste mês, a Biblioteca Municipal promove a Hora do Conto, baseado na obra de Luís Silva O Livro da Avó. Esta obra tem uma narrativa muito breve e simples, motivada pela memória e pela saudade de uma avó muito especial.

Para ocupar os tempos livres, os Ateliês de Verão irão realizar-se, às quintas-feiras, durante o mês de Julho e pretendem proporcionar aos participantes actividades lúdico-pedagógicas, contribuindo para o gosto pela leitura e pela expressão artística. Estas actividades terão as seguintes datas e temáticas: 2 de Julho – Ateliê Arte em Feltro, 9 de Julho – Ateliê Conhecer Andersen, 16 de Julho – Oficina de Construção de Herbário, 23 de Julho – Ateliê de Bordados, 30 de Julho – Ateliê de Dança.

Para informações, inscrições ou esclarecimentos adicionais contactar a Biblioteca Municipal Alexandre O´Neill através do número de telefone 249 739 367 ou via correio electrónico para biblioteca@cm-constancia.pt.

Leia mais. Viva mais.

Por CMC

Às Estrelas que Também Amo ! ! !






(Você entenderá ! ;-)

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto ...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."


Olavo Bilac