
Amo-te sempre 
com um pouco de barco e de vento 
com uma humildade de mar à tua volta 
dentro do meu corpo; com o desespero 
de ser tempo; 
com um pouco de sol e uma fonte 
adormecida na ternura. 
Merecer este minuto de palavras habitando 
o que há sem fim no teu retrato; 
Este mesmo minuto em que chegam e partem navios 
- nesta mesma cidade deste 
minuto, desta língua, deste 
romance diário dos teus olhos - 
(e chegarão com armas? refugiados? trigo? 
partirão com noivas? missionários? guerras? discursos?) 
Merecer a densa beleza do teu corpo 
que tem água e ternura, células, penumbra, 
que dormiu no berço, dormiu na memória, 
que teve soluços, febre, e absurdos desejos 
maiores que os braços, 
merecer os dias subindo das florestas - e vêm 
banhar-se, lentos, nos teus olhos... 
Merecer a Igreja, o ajoelhar das palavras, 
entre estes cinemas visitando, em duas horas, a alma, 
estes eléctricos parando atrás do infinito 
para subirem os namorados, a viúva, o cobrador da luz, a 
          costureira 
entre estes homens que ganham dinheiro, sangue frio, ou vícios, 
          ou medalhas 
e estes telefones roubando a lealdade dos olhos... 
Teus cabelos cheirarão ainda a infância 
e a vento, depois de passarem por esta fome pública, 
estes olhos com regras de trânsito, estes dias sujos, 
estes lábios que já não ensinam o pomar 
ou a fonte, nem têm gosto de leite e de aurora, 
depois destes olhos cheios da pergunta de estarem vivos 
em vão? 
Merecer honradamente este poema, todos os poemas, 
como quem parte, entre os dedos a brancura 
quente de um pão! 
Vítor Matos e Sá, in 'Esparsos'