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segunda-feira, 20 de abril de 2009
Culpa.
“Vai ser rápido. Dói menos que uma cólica forte”. Falou o médico, enquanto pedia para ajustar meu corpo na maca. Cheguei-o bem para frente e as pernas se encaixaram perfeitamente naqueles braços gelados de metal. Uma de cada lado, ele ao meio, concentrado. “Não se mexe”, falou com um tom mais sério, enquanto enfiava um tubo estranho dentro de mim. Meus olhos fixos no teto, as mãos suadas apertavam com força uma outra mão amiga. “Ele não quis vir” murmurei olhando dentro dos olhos dela. Olhos cúmplices que me entendiam. “Vou começar”, nos interrompeu o homem do jaleco branco. Tremi. Não porque o quarto era gelado. Mas por temer ser um monstro, um demônio, uma assassina. O pior de tudo foi que ele (o do jaleco) mentiu: aquilo doía muito mais que uma cólica forte. Parecia que todos os meus órgãos estavam saindo por aquela fina cânula. E também, como num compasso, os meus sonhos maternos, as brincadeiras de “casinha” onde sempre era a mãe, o olhar de ternura pros bebês dos outros que queria carregar, sentindo-os meus. Previamente meus. Compreendi bem cedo que toda mulher é mãe ao nascer, sem nem saber. Mas era tarde. Ouvia o som da máquina — trituradora de pedaços humanos ensangüentados — fazendo seu trabalho. E a culpa, culpa, culpa latejando, pulsando, gritando que aqueles pedacinhos humanos que seriam jogados fora daqui a nada, poderiam um dia dizer “mamãe” e me arrancar sorrisos patéticos de pais. Podia ser um médico, engenheiro, advogado, escritor, poeta, podia não ser nada disso e mesmo assim ser tudo, para mim. Mas eu não quis. E me espantaram as palavras secas do médico ao findar o serviço que o enriquecia: “Pronto. Você voltou a ser como antes”. Eu olhei e não vi ninguém. Mas ainda assim falei: “Eu nunca mais vou ser como antes”. Ele, retornando o olhar em mim, respondeu espremendo ferinamente o olho esquerdo: “Não exagere. Se cuide para não precisar voltar. Porque a maioria volta”. Ouvindo isso, pasma, vi naquele bicho qualquer coisa que lembrava o Frankenstein. Ou quem sabe um escarro, pus, secreção, casca de ferida seca que a gente arranca com o dedo, um espelho, eu mesma. Falar isso é um absurdo, pensei. E, um ano depois, voltei.
Débora Lázaro de Almeida
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