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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O Meu Péssimo Carácter.




Mandar-lhe-ei o meu retrato. Quer? Mas até lá, e para prevenir a hipótese do meu rosto a enganar, vou descrever-lhe desde já o meu péssimo carácter: sou triste, imensamente triste, duma tristeza amarga e doentia que a mim própria me faz rir às vezes. É só disto que eu rio, e aqui tem já V. Ex.a no meu carácter uma sombra negra, enorme, medonha: a hipocrisia!... Porque eu pareço alegre e toda a gente gaba a minha... alegria! Estou já a vê-la, num gestozinho de enfado, amarrotar, irritada, a minha carta, com um vago sentimento de arrependimento por querer conhecer uma criatura assim tão mal dotada. Mas ainda este é o primeiro defeito; o segun­do, e para o mundo virtuoso e prático é simplesmente horrível, é o sonhar, sonhar muito, olhar muito além, para longe de todos os que cantam, os que falam, os que riem!... Tenho dias em que todas as pessoas me dão a impressão de pequeni­nas figuras de papel sem expressão, sem vida. Estou falando a V. Ex.a com o coração nas mãos, com a franqueza com que não falo a ninguém. Até estou admirada de mim própria; mas não admira talvez este feitio pouco comunicativo, em vista de não ter conhecido ninguém culto e sincero e amigo a quem eu pudesse ter falado assim um dia. Mãe já a não tenho há muito; tenho 22 anos e não me recordo nem da cor dos seus cabelos; irmãs nunca tive, e amigas tenho as que toda a gente tem. Amigas... conhecidas, por outra, tenho muitas, princi­palmente nesse meio de luxo e opulência em que a principal felicidade consiste num chapéu ou num vestido da moda. Eu não as entendo, nem elas a mim me entendem, e eu não sei se serão elas ou eu a razão, neste mundo em que cada um vive para si. Eu sou refractária a todas as altas questões de elegân­cia, e se um vestido ou um chapéu me encanta é apenas pela porção de arte que eles podem conter, e nada mais. Já vê V. Ex.a que, se esta maneira de sentir não é bem um defeito, é ao menos uma feição desagradável do meu carácter.

Florbela Espanca, in "Correspondência (1916)"

2 comentários:

cucchiaiopieno.com.br disse...

Quanta franqueza, queria eu ter um caráter assim! Muito belo, amei!
Um grande abraço
Léia

angela disse...

Florbela
Espanca, espanta, encanta.
beijo